domingo, 24 de fevereiro de 2013

A profundidade começa na superfície (III)



Cena 4

(Dia, apartamento do casal. Camila chega da rua carregando uma sacola de feira trazendo frutas e verduras. Dara está no sofá rodeada de livros, segura uma prancheta de desenho e um pincel grande, abastecido pela tinta preta de um frasco sobre a mesa de centro.)

Dara ― Deixa eu te ajudar...

Camila ― Obrigada, vamos pôr na parte de baixo da geladeira. Abre a gaveta pra mim? Isso, pega as uvas; essas a gente lava depois, vou por o agrião na água primeiro... Tava desenhando, é?

Dara ― Escrevendo, pensando... ah, e ouvindo também: os barulhos da cozinha continuam a toda; umas duas vezes me levantei pra ver o que era. A novidade é que agora não vem só na cozinha, quartos e banheiro também recebem visitas do além.

(Saem da cozinha na direção da sala, Camila senta-se no sofá onde antes estava Dara.)

Camila ― Vocês... quero dizer, você também acredita nessas coisas?... Hãm, fantasmas, aparições, tipo, fenômenos sobrenaturais...

Dara ― Você está querendo dizer fenômenos de causas desconhecidas, certo? Bem, no desconhecido eu acredito sempre, nunca duvido da minha capacidade para a ignorância.

Camila ― "Amo em ti o que mais ignoro, e por isto mesmo, a única coisa que não posso esquecer". Não me lembro quem foi que disse isso, mas talvez seja justamente a força do equívoco, o desconhecimento de que você estava falando, que escreva o arquitexto do amor: um traço, uma marca de passagem; já que só se conserva o que um dia foi ausência. Tenho pensado cada vez mais na possibilidade da memória da água, o sonho metafísico da homeopatia: podem as substâncias deixar um 'rasto' no solvente que as diluiu até desaparecerem? Pode a matéria subsistir numa forma, como dizer, menos densa, real, existente?...

Dara ― Se doeu, se houve amor, haverá uma trilha, pegadas. Pensa na pessoa que você é, que você se tornou: cada amor que você teve, cada um... cada uma que você amou, sutilmente se perpetuam em quem você é hoje... claro que não em um sentido 'material', porém, ainda assim, efetivo.

Camila ― Então a antropofagia é um subespécie do amor, ou será exatamente o contrário?

Dara ― Acho que o amor é o gênero, e a antropofagia, a espécie. De qualquer modo, não há amor sem incorporação...

(Beijam-se demoradamente.)

Camila ― Hmm, não sei se você sabe, mas a antropofagia é uma espécie de elemento definidor do caráter nacional. É extremamente contraditório: este é um país conservador e, ao mesmo tempo, muito predisposto à incorporação de tudo que lhe vem de fora. Um verdadeiro saco de gatos, um solário onde todos os gatos são pardos.

Dara ― Curioso mesmo, andando pelas ruas tive uma sensação agradável e multicolorida. As pessoas daqui exibem todas as combinações de cor de pele possíveis, a tal ponto, que passei quase despercebida caminhando no meio da multidão.

Camila ― Que bom, fico feliz de saber que você tem saído de casa, passeado sozinha. Só tome cuidado, esta não é uma cidade civilizada por inteiro...

Dara ― Sim, verdade, esta metrópole é um labirinto de possibilidades e perigos; um caos em que todos ainda estão descobrindo formas de sobreviver, na qual as estratégias de convivência permanecem em aberto. Tudo por aqui ainda se encontra em estado de fluxo; e eu saio à rua como se fugisse de você, deste apartamento, como se estivessem abertos todos os caminhos do mundo.

Camila ― Dara, meu bem, não se esqueça: você chegou agora, veio de muito longe, com o coração aberto e a alma cantando.

Dara ― As grandes cidades não se mostram de uma vez, e nunca por inteiro, via de regra, se fecham obstinadamente para o turista ocasional. Estou convencida de que elas são como as orquídeas, é preciso tempo, cuidado e paciência para conhecê-las; assim como os recantos da urbe, as flores de orquídea se recolhem em longas latências de espera e segredo. Geralmente, são flores de perfume diáfano, pouco evidente, mas quando eclodem, inauguram plenitudes, transformam o passo e as distâncias, desdobrando o espaço à sua volta. As cidades precisam ser flanadas, percorridas pelo lado insólito: uma fábrica abandonada, a beira suja de um rio sujo, um hospital em ruínas, os subterrâneos, os presídios, os edifícios condenados, o muro alto que margeia a linha do trem... Duas balconistas de uma loja brigam no meio da rua, desentendem-se, xingam-se a altos brados; os passantes se assustam, saem de lado; as duas passam dos palavrões aos safanões, em breve, rolam pelo chão e se arrancam mutuamente as roupas sem que ninguém faça nada. Alguns gritos e incentivos da platéia, assobios, não entendo o que elas tinham a dizer uma à outra; a pequena multidão se dispersa, todos seguem seu caminho. Tudo tão misterioso, e belo, e violento; tão sem explicação!

Camila ― Você tem medo que a gente brigue?

Dara ― Claro. O amor e a guerra são artes da perda...

(Ouvem-se batidas na porta. Dara vai abrir, na soleira aparece um menino de aproximadamente cinco anos carregando um boneco na mão. Camila reconhece o filho dos vizinhos de andar.)

Camila ― Olá mocinho, errou de porta?

(O menino vira-se na direção de Dara erguendo o boneco da direção dela.)

Morador 2 ― Bang, bang, pow, pow, pow!

domingo, 17 de fevereiro de 2013

A profundidade começa na superfície (II)



(As duas se levantam, vão até a cozinha verificar. Voltam para os mesmos lugares que ocupavam anteriormente.)

Camila ― Que coisa... parecia o som de panelas caindo, será que veio de outro apartamento?

Dara ― Achei até que ouvi passos...


Cena 3

(Interior do apartamento. Noite. Os móveis já não têm lençóis brancos a cobri-los, a mesa apresenta restos de um jantar, há vários guardanapos, talheres, copos e pratos com restos de comida e bebida neles. Uma amiga de Camila ficou conversando até mais tarde; ela se levanta da mesa e dá uma volta pela sala com uma taça de vinho na mão.)

Amiga ― Camila, você é mesmo uma caixinha de surpresas; não é de admirar que as pessoas tivessem tantas perguntas... Também, pudera: você saiu do país há quinze anos, foi estudar fora, a geninha da classe vai pro M.I.T, faz doutorado, vira especialista de satélites da NASA, participa de missões em Marte... é muita informação pra nós, que somos um tantinho menos nerds, não? Acho que a noitada foi um tédio mortal pra Dara, olha só ela quase caindo de sono...

Dara ― Que nada, só não estou acostumada com tanto vinho, só isso.

Camila ― Bom, pelo menos os meus amigos não estranharam o fato de trazer a minha namorada estrangeira pra morar comigo no Brasil. É legal porque a Dara anda noiada com essa história de tratarem ela com diferença. As coisas mudaram muito desde que eu fui pra...

Amiga ― Ei, muita calma nessa hora, também não somos esse atraso todo, meu bem. Hoje em dia tamo chique no úrtimo. Todas as grandes marcas têm loja nos shoppings daqui; Miami, Paris e Nova Iorque estão cada vez mais perto... é o nosso modo de inserção no mundo: compro, logo existo; a classe média tá com a fúria de adquirir. Em resumo: tamo podendo!

Camila ― Sim, mas ainda não desenvolvemos a volúpia de adquirir conhecimento, desenvolver tecnologia; por exemplo, Harvard não abre franquias aqui, já a Columbia University tem uma filial em Buenos Aires...

Amiga ― Ih, lá vem o complexo de vira-lata... Mila, não tem nem comparação: os argentinos ainda acham que o Perón e o Gardel estão vivos, e todos nós sabemos que as únicas coisas que prestam lá são o Messi, o Darín e o bife de chorizo...

Dara ― Reparei uma coisa neste jantar: vocês, que são tão alegres e festeiros, que se agarram e se beijam a toda hora; mesmo assim, ninguém encostou em mim a noite toda. Só você Camila...

Camila ― Não te falei? A Dara encanou com isso: vê discriminação em tudo!

Amiga ― Querida, vou dar uma de Mãe Dinah: aguarde, dentro em breve o povo vai tar numa pegação, num grude, que você vai ter saudade desta fase “nojo de mim”; tá no nosso sangue também: não resistimos a uma novidade. Fica a dica. Só quero ver se a Camila não vai chilicar de ciúme...

Dara ― Taí, você chamou a atenção pra outra coisa que me intriga: a autodepreciação gozadora. Vocês são os primeiros a criticar as próprias mazelas, e os últimos a permitir que os de fora o façam...

Amiga ― Ora, que dúvida querida, trata-se do sacrossanto instituto da falsa modéstia; a religião nacional é o “tudo bem”, a alegria de carnaval, a felicidade de facebook... Quando sou eu a me criticar, estou sinalizando o quanto sou cool; se é você a me criticar, das duas três, ou você é minha inimiga, ou ainda pior: você é uma chata. Guarde-se bem de ser a chata do rolê, não há nada pior do que isso por estas bandas; não há problema algum em matar, roubar, corromper, aleijar, já incomodar... como direi, pega mal, aliás, pega malésimo.

Camila ― É isso mesmo, com o tempo, Dara, você pega o jeitão da coisa e vai deixar de sofrer com a nossa maneira de ser. No fundo, o que todo mundo quer é ser aceito; muito embora isto envolva um certo grau de acomodação a regras não escritas...

Dara ― Certo, é como uma palhaçada em que não se pode nomear os palhaços.

Amiga ― Falando nisso, eu confesso que não entendi nada quando você largou uma carreira promissora na NASA pra arriscar sua reputação de cientista séria nessa aventura de procurar sinais de civilizações alienígenas... mas, no fim, Camilota estava certa, pra variar.

Camila ― Não foi nada fácil, o SETI* enfrenta muita resistência e incompreensão no meio acadêmico... mas é um empreendimento fantástico, junta cientistas e pessoas comuns nessa busca por sinais de rádio vindas do espaço...

Amiga ― Ah, mas vamos combinar, que foi uma péssima idéia trocar os Isteites por Puerto Rico, lá isso foi...

Camila ― Imagina! O telescópio de Arecibo é um os maiores que existem, e depois, trabalhar numa equipe realmente colaborativa é bem melhor do que viver num ambiente hostil de competição por holofotes e verbas. Pensa bem no que isso significa: milhares de pessoas em todo o planeta emprestam a capacidade de processamento dos seus computadores pessoais para analisar os dados que vêm do espaço; uma iniciativa baseada na cooperação e na generosidade... admita que isso está longe de ser comum na espécie humana. Nossa rede tem mais de uma centena de teraFLOPS de capacidade de processamento de informações, é o segundo maior computador do mundo!

Amiga ― Querida, não sei se entendo todos os motivos do seu entusiasmo, esses flics e flocs são grego pra mim, mas o que eu sei é que você arrumou uma namorada de outro planeta. Isso, sim, está bem longe de ser comum na espécie humana!

Dara ―Ela tem razão. Você podia ganhar uma fortuna me exibindo como uma atração de circo freak em vez de me convidar para morar na sua casa...

Amiga ― Claro, pensa só: entrevista para o Fantástico, participação em reality shows, fim de semana na Ilha de Caras...seria um must de verão. Depois, claro, a novidade passa e daí vira carne de vaca. Vocês são o quê, afinal, o primeiro casal trans-racial espacial, ou transhomossexual intergaláctico?

Camila ― Hahaha, boa essa, somos as sapatas intergalácticas, as pioneiras das relações pós-humanas!

Dara ― Vocês beberam demais, as duas, já chega de tanta bobagem.

Camila ― Relaxa, baby. Um pouco de humor não faz mal pro nosso amor...



* SETI, sigla em inglês para o projeto Search for Extraterrestrial Intelligence.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

A profundidade começa na superfície (I)




Dramatis personae

            Dara
            Camila
            Moradora 1 (idosa)
            Morador 2 (menino)
            Amigo de Camila
            Amiga de Camila


Cena 1

(Noite. Dara e Camila chegam de viagem carregadas de malas, sacolas e valises. Hall de entrada de um prédio antigo de classe média cuja decoração inclui: duas savonarolas de jacarandá com encosto de couro, uma mesa baixa de laca escura sobre a qual se encontra uma jarra cilíndrica de vidro preenchida por três copos-de-leite e, na parede, uma pintura a óleo com moldura dourada representando uma cena de caça. Ao lado dos móveis, duas portas de elevador com postigos de latão, abaixo destes, placas que indicam “Social” e “Serviço”. Uma senhora de idade aguarda na frente do elevador social.)

Moradora 1 ― Boa noite.

Camila ― Boa noite.

Moradora 1 ― Você não é a neta do ‘seu’ Martos?

Camila ― Eu mesma. Puxa, que boa memória a senhora tem, estive fora muito tempo... nem achei que alguém aqui me reconheceria.

Moradora 1 ― Vai morar no apartamento dele? Depois que ele faleceu ficou vazio tantos anos que até achei que a família tinha esquecido.

Camila ― Bem, na verdade houve problemas no... no inventário do meu avô, mas agora tá tudo certo. Vamos ser vizinhas, ao que parece.

Moradora 1 ― A sua... amiga, também? Vão morar juntas, né?, veja: não é da minha conta, só pergunto porque você não deve estar precisando dividir as despesas, afinal, a menina é de uma família tão boa...

Camila ― É, não, pra ser mais exata, nós estamos juntas há bem um tempo, se a senhora me entende... Ah, desculpe, esqueci de apresentá-las... esta é a Dara.

Moradora 1 ― Muito prazer.

Dara ― Prazer.

(Não se cumprimentam. Apenas trocam ligeiros acenos de cabeça.)

Camila ― Tá demorando esse elevador, não? Acho que vamos pelo de serviço.

Moradora 1 ― Ih, esse é o pior: estamos no horário de saída das empregadas, aí, já viu, elas param no andar umas das outras de conversa, saem juntas pra pegar a condução... No social, são as crianças subindo e descendo, um horror!

Camila ― Bom, chegou o de serviço. A senhora vem conosco?

(Dara empurra as bagagens para o elevador e entra.)

Moradora 1 ― Obrigada. Vou aguardar o outro. Espere um pouco, a sua amiga... bem diferente ela, fala com sotaque, é estrangeira?

Camila ― Sim... de certo modo, claro, ela veio de fora...

Moradora 1 ― Não leve a mal que eu diga, mas... é melhor levá-la num bom médico, a cor dela tá meio esquisita, sabe?


Cena 2

(Interior de apartamento, há uma mesa de jantar com algumas cadeiras e um sofá; o restante dos móveis está coberto por lençóis brancos. Vêem-se duas portas, uma dá acesso ao quarto, a outra, a uma cozinha americana. As bagagens estão acumuladas num canto, Camila está sentada no sofá e Dara sentada à mesa. Camila procura algo numa nécessaire.)

Dara ― Que coisa!

Camila ― Que coisa, o quê?

Dara ― Essa intromissão na vida dos outros, ou vai dizer que não reparou?

Camila ― É melhor você ir se acostumando, esse é o jeito das pessoas por aqui. Ela não fez por mal, tenho a certeza.

Dara ― Pode até ser. Mas não há como negar que aquela senhora conseguiu em poucos minutos informações completas sobre nós. Seus conterrâneos me parecem ser bem do bisbilhoteiros.

Camila ― Por outro lado, eles costumam ser muito solidários e afetuosos. Mas isso não tem importância, o importante é que chegamos e este agora vai ser o nosso cantinho. Acho que vamos ser tão felizes aqui...

Dara ― Que é que você tá procurando, Mila?

Camila ― Meu sonífero. Devia estar neste estojo...

Dara ― Se vamos mesmo ser felizes, talvez você consiga viver sem os seus remédios. Agora sou eu que estou dando uma de entrona, mas é que... alimentei essa ilusão por um tempo: achei que a minha chegada na sua vida poderia fazer você largar as pílulas mágicas...

Camila ― Mas eu sou tão feliz com você! Você nem pode imaginar o que era a minha solidão, a angústia, o desespero dos dias e noites em que só pensava em como seria bom simplesmente deixar de existir.

Dara ― Ok, não deixa de ser uma declaração de amor. Embora pela via negativa, pelo contraste: o que você está dizendo, no fundo, é que sem mim poderia ser pior...

Camila ― Vamo parar? Dá, tou super cansada, e quando entro nessa pilha, meu sono fica ainda mais difícil... Não podemos deixar esse assunto pra depois, não? Por que você tem sempre de ir tão a fundo em tudo?

Dara ― Tem razão. Às vezes pego pesado demais... mas é que me faz uma impressão danada te ver tomando um coquetel pra ligar de manhã, e outras bombas pra desligar à noite.

Camila ― E o que você faz quando o sono não vem de jeito nenhum?

Dara ― Meditação. Você ouviu o barulho?

Camila ― Sim, veio da cozinha.