sábado, 21 de dezembro de 2013

Leviathan melanophyllus (#3)


― Cê tá bem aí atrás, Dárius?
― Só alegria. Os totós até já tão tirando no palitinho quem vai ser o primeiro a deschavar nóis!
― Cara, tô dando tudo, tô enfiando o pé na tábua, mas esta bagaça tá cheia demais pra correr!
― Suavão, Pernilla, meu negócio não é dar volta de charrete na pracinha, tá bom pra espantar o sono.
Pouco depois de uma lombada, a passagem estava obstruída pelo duplo desabamento de um poste de iluminação arrastado ao chão na queda do alfeneiro da calçada oposta. Do lado da raiz a passagem era larga o suficiente para um veículo e meio, passaram, a confusão no afunilamento da massa de perseguidores valeu-lhes preciosos metros de vantagem. Os veículos emparelharam novamente, sempre fugindo na direção do morro.
― Como é que tá aí, Nilla?
― Tranks, chefia, o chato é que, na subida, esta banheira anda bem menos...
― E você, Dárius, algum machucado?
― De boa. Só que gastei as biribinhas todas nos pulguentos.
― Tamo com sorte, olhem lá adiante... ― Rebeca chamou a atenção para o alto da estrada, onde a avenida ladeava uma pequena praça e se dividia numa subida abrupta a sudoeste, e um braço de asfalto sinuoso rumo ao norte.
A carcaça de animal grande, capivara talvez, era disputada por uma nuvem turbulenta de urubus ao lado do que tinha sido uma banca de revistas. A matilha partiu pra cima sem hesitar, apenas uns poucos desgarrados continuaram no encalço deles.
― Segura aí minha gente, vou peidar na fuça da cahorrada...!
A bomba, lançamento preciso de Naldo, fez os últimos rafeiros desistirem. Brigar com os bicuços de repente parecia bem mais divertido; pra quem chafurda em porcaria o dia todo atrás de restos, a inhaca da carniça satisfaz mais o paladar do que o gás lacrimogênio.
Resolveram se abrigar sob o ponto de ônibus tomado pelo mato. A pequena praça adjacente era uma fonte verdejante regurgitando ondas de proliferação vegetal, as grossas raízes das figueiras-bravas cresciam desenhando um reticulado art nouveau entre os blocos remanescentes do calçamento. O restante da subida era bastante íngreme e em terreno relativamente aberto, então, viria a travessia da grande avenida, onde estariam completamente à mercê do ataque das aves de rapina.
― Pelo menos os gatões ficam longe com esta algazarra de uivos ― Rebeca checava os danos e baixas do arsenal.
― O asfalto é ruim na escalada, mas dá passagem... o que tem são os pombos que tomaram as casas da bira, digo, da beira da...
― Hmm, seguinte, estamos no limite do que podíamos ter gasto de munição a esta altura... ainda assim, nada é pior do que os bichanos.
― Ei, abaixa a cabeça Nilla!
Emergindo repentinamente da camuflagem, um louva deus descomunal agarrou a motorista pelas costas pinçando as garras anteriores no colete de proteção. Confundem o colete de kevlar com a carapaça dos escaravelhos. Pernilla dobrou o tronco num gesto ágil, sentindo zunir no ar a passagem da lança de Dárius que decepou de um só golpe a cabeçorra do inseto.
― Caracas, nem vi de onde veio esse filho da puta!
― Cê tá legal, amor? Valeu aí, Dá...
― Viram o tamanho do bruto? Então Reba, filma direito essa tua mina, tem macho na pegação dentro das moitas...
― Boa foiçada, soldado, gostei da prontidão. Pilotas, sem palavras, cês tão dirigindo muito. Tem barra de cereais aí na sacola, vamos dar uma forrada antes de seguir em frente.
Como previsto, sofreram um ataque maciço das pombas antes de atingir o topo. Três sacas de grãos de prejuízo. Antes de se atreverem a cruzar as quatro pistas que os separavam da encosta sul, por onde desceriam até o Galpão, avistaram os vultos dos carcarás nos terraços dos prédios margeando a grande avenida. Alguns gaviões cruzavam o céu a média altitude, urubus executavam suas manobras elegantes mais acima.
― Esta é a parte mais escrota do rolê...
― Não tem jeito: é ele, ou nós.
Dárius descobriu o encerado da caçamba e puxou o bicho pra fora. Ernaldo desamarrou-o e deu-lhe uma ferroada no traseiro felpudo, o filhote de coelho saiu correndo desarvorado para o meio da rua. As aves se lançaram na captura da isca viva enquanto eles atravessavam a avenida no pau. Ouviam os grasnados dos predadores na disputa furibunda descendo pelo outro lado da montanha.
― Mano, tu deu um pula-pirata no coelhinho que quase arrancou o rabo!
― Depois choro por ele, agora nós vamos ficar é bem do ligados: daqui em diante é território da gataria.
― Que porra é aquela gente? O mundo tá de ponta cabeça, ó lá!
― Fata Morgana.
― Nunca viu, Rebeca?
Bordeavam um talude do terreno quando o belvedere lhes descortinou um vasto retângulo da zona sudoeste. Efeito do calor do meio dia, a diferença de temperatura entre as massas de ar da planície e do topo criava o fenômeno óptico. A cidade como que boiava num céu impossível.


domingo, 15 de dezembro de 2013

Leviathan melanophyllus (#2)


― Fica sussa, chefe, do jeito que as ruas tão, o menor dos problemas nesse bonde vou ser eu, garanto.
Entretanto, a chuva parou.
Num ponto o mercenário acertava, desde o surgimento do Leviathan m. muito havia mudado lá fora, para além dos muros lacrados dos viveiros humanos ― tínhamos perdido o território.
A cidadela caiu em toda parte, sob o impacto da catástrofe biológica, o conjunto da humanidade experimentava um retorno dramático às condições reinantes na origem da espécie: isolamento, população reduzida, escassa dominância sobre os outros animais.
Alguns milhões de pessoas foram devoradas pelos seus próprios pets antes que a nova situação religasse nas massas o pavor da natureza selvagem. A expansão sem freios da Natura naturans.
Abrem-se os portões da Colônia Cecília.
Os veículos saem rapidamente para o meio do asfalto, executam uma curva à direita em alta velocidade, acelerando no aclive suave da rua curta. Pilotando o jipe, Rebeca dá cobertura andando na frente do caminhão carregado de frutas e grãos.
― Uhu! Barra limpa, mano, a hora é essa!
― É bom começar sem vento contra, mas a viagem á longa. Difícil não ter problemas com os penosos levando tanta comida...
― Hmm, certo... até galinha virou problema. Escuta, este corre é food for drugs, não é? ― Beca não se gastava em voltas pra chegar onde queria.
Food for aid. Estamos com baixos estoques de medicação contínua, sou contra arriscar soldados nisso. Nem mesmo acho bonito gastar estoque com bagulho, por mim, só mandaria drones atrás dessas pragas.
― Ah, você sabe que aqui perto só tem mercadoria de baixa qualidade... mas não é o que falam do Galpão, lá rola o isômero D, o mais, mais.
― Sei que falam do Dr. W toda essa asneira de metanfetamina, mas comigo nunca nem me propuseram missões do tipo ― Ernaldo mentia, a verdade é que não lhe deram muita escolha.
― Pô cara, queria te dizer, mó respeito...
― Que é isso, tá me estranhando?
― Nem um pouco, mano, cê sabe que cê é uma lenda viva.
― Sai pra lá Rebeca, corta esse mimimi, não tem lenda não, só tem estar vivo. Estrela neste esporte não chega a vovô.
― Você chegou aonde ninguém chegou.
― Pode ser, mas juro, não foi me achando o rei da cocada que fiquei vivo até agora.
― E esse Dárius, hem? Não parece amar demais a própria pele, tem pinta de maluco de dar com pau em pedra...
― Por isso que resolvi não ir no carro com ele, vou dormir na mira desse cara. A conta dele não fecha.
― Se pisar na bola com a Pernilla, deixa eu finalizar ele. Trato?
Riram.
Mas a mortadela insistia em voltar à sua boca, odiava ter de mentir para os seus homens. Já não podia escolher muito, lembraram-no disso. Estava ficando velho. Tinha de engolir Dárius e tudo mais que lhe mandassem, compreendera que não ia sobreviver a uma sala fechada com a mesa cheia de papéis, não se via vinte e quatro horas por dia enredado na política da Colônia.
Os problemas começaram ao deixar as ruas secundárias, perto do entroncamento da via principal, ao sul, o asfalto quase desaparecia no primeiro trecho aberto do caminho. O off road precisou abandonar o seu posto de observação na esquina para ajudar no desatolamento.
Neste momento, ouviram os latidos vindos do fundo da avenida. Uma matilha enorme, faminta e em disparada.
Rebeca pulou na cabine, Ernaldo se trancou no cockpit traseiro, testando duas vezes a ignição do lança-chamas. Ajustou o laser. Arrancaram na direção do bando, dispunham de pouco tempo até serem alcançados e precisavam criar uma distração ― sem se deixar capturar, o que era menos evidente, já que a velocidade do carro era um nada superior à dos cães.
Poucos pilotos executavam tão bem a manobra em U: Rebeca dirigiu a toda a velocidade na direção da cachorrada, trafegando bem aberta pela direita do asfalto; a poucos metros deles, deu um cavalo de pau de trazer o café da manhã junto com os bofes pra fora. Naldo ficou de frente para um mar de focinhos arreganhados, rosnando enlouquecidamente.
― Quipariu, Rebeca, cê precisava chegar tão perto?!
― Vamo, cara, aciona logo essa porra de apito!!
Mandou um jato de chamas nos vira latas que quase encostavam na carroceria, e se virou para alcançar o Silent Dog Whistler. Rosqueou o tubo na posição três, soltou dois silvos curtos, agudíssimos, praticamente inaudíveis: pii-pii. A matilha parou de repente, como na brincadeira de estátua.
― Força Beca, pé embaixo mulher, a bobeira deles não vai demorar pra passar...
― Segura, peão, que nós vamo fritar pneu!
Refeitos do susto, os cães retomaram a perseguição. Problemão: os companheiros só agora conseguiam pôr a jamanta em marcha no atoleiro deixado pela chuva. A falange canina se dividira em duas, a maior parte perseguia-os de perto, um grupo menor dava caça ao caminhão. O lança-chamas de Dárius falhou, obrigando-o a gastar toda a sua cota de granadas nos mais próximos. Se equilibrando com dificuldade na caçamba, ele lutava no corpo a corpo, golpeando com arpões e lâminas, alvejando o laser nos olhos da canzoada.


quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Leviathan melanophyllus (#1)




            Além disso, era um daqueles homens que preferem observar a própria vida, julgando impertinente qualquer ambição de vivê-la. Deve-se acrescentar que Ernaldo observava seu destino pessoal da mesma maneira como os outros, mais numerosos, costumam olhar pela janela um dia de chuva.
            Pouco antes que saíssem, começou a cair uma chuva miúda. Expedição suspensa, por enquanto.
            Se tivessem lhe perguntado, Ernaldo teria respondido que a sua vida continuaria assim para sempre até o final previsivelmente abrupto.
Na certa acabaria devorado pelos bichos, ou morto por algum bando de saqueadores rivais, como, de resto, tinha visto acontecer ao longo dos anos a toda uma geração de companheiros. Perdas em ações externas, segundo o discurso oficial. Toda a sua geração. Era o mais velho, mais experiente, o chefe da operação.
            Um grupo sem novatos, Dárius, Rebeca, Pernilla, e ele. Dois em cada veículo, sem blindagem, mas equipados com canhões de grosso calibre. Sem pressa, terminaram de carregar equipamentos e víveres no caminhão: lasers, granadas, lança-chamas, mochilas de alpinismo, latas de embutidos, anfetaminas, se precisassem passar a noite fora, além de ampolas de propofol, caso fossem capturados.
            Pernilla e Rebeca são casadas, motivo pelo qual pôs a primeira para dirigir o caminhão-caçamba, e a segunda com ele na off road. Adotava esse sistema quando havia mais de um carro, se um veículo se perdesse do outro no meio da missão, a relação forte entre dois soldados sempre funcionava como estímulo adicional na hora de se decidir pelo resgate.
            Ernaldo tinha mais tempo de comando do que os outros de correria, mas não era isso que o preocupava naquela manhã. As meninas eram muito boas de serviço: firmeza, lealdade e, sobretudo, um tipo de coragem sem o tempero da estupidez. Dárius era o cabelo na sua sopa. Temerário, descuidado, conduzia-se por hábito no limite da insubordinação, fazia parte dos desperados, aqueles que entram na milícia faltos de opções e vocação.
            Perdera toda a família num ataque das feras.
            ― Naldo, nós só estamos aqui porque somos “diferentes”.
― Caramba, preferia que você estivesse decorando os caminhos alternativos no mapa, em vez de fazer filosofia...
― Bah, isso o GPS faz sozinho... tou falando dessa vida que a gente leva, dizem pra nós: “não há mais nobre profissão dentro da Colônia”, “vocês são a reserva moral da comunidade”, e por aí a fora. Puta hipocrisia...
― Bom, se você quer tanto saber, também reconheço a falsidade social, não vivo numa bolha... só que, não inventei e não gosto desse jogo, nem existe a hipótese “não-vou-jogar-nunca”, mas há coisas que são reais. Sobreviver é uma delas, meu foco tá aí.
― Certo, é bem isso que se espera de um comandante: foco, disciplina, deixar fora todo o resto...
― Numa coisa você tá certo, é uma pérola do humor negro, agora que estamos todos igualados na mesma lama, nego ficar com essas baboseiras de subespécies, raças, aptidões inatas...
― Era disso que tava falando... nós vivendo na duranga, e só se fala merda por todo lado, um monte de gente afirmando isto, negando aquilo, e vice versa, enquanto a garra aperta, o cerco se fecha à nossa volta!
― Ok, Dárius, mas, qual a alternativa? As pessoas só conseguem levar em frente se alguém estiver o tempo todo a lhes aparar as arestas do mundo com histórias da carochinha... faço o quê com isso? Agora, quando a gente entra em ação, é preciso apagar as ideologias, limpar os sentidos para se deixar guiar pelos instintos, o medo carnal. Acredito no que sinto, não no que minto.
― Hoje, quando olho pra dentro, descubro pouco medo em mim.
― Já tinha percebido. Vou ser muito direto. Isto não me agrada, não ouça como julgamento sobre você e suas motivações, só não quero minha equipe correndo riscos desnecessários.


sábado, 30 de novembro de 2013

o espia


nas gavetas vazias
no fosso de despejo
Nas baratas do pensamento
no tesão embutido

pelas frestas, a luz inventada
vem o sono dos sonhos
vigiar vultos desvãos 
as coisas se furtam

nunca sandálias janelas
abertas
como o branco dos olhos
como o nada atrás

da porta

domingo, 24 de novembro de 2013

os apátridas (epílogo)



Na situação sem saída em que me encontro, não tenho outra alternativa que não seja pôr um fim a tudo. Será nesta pequena cidade dos Pirineus, onde ninguém me conhece, o meu ponto final. Peço-lhe que transmita meus pensamentos ao meu amigo Adorno, e lhe explique a situação em que me encontro. Não há tempo suficiente para que escreva todas as cartas que gostaria.
Nunca li nada escrito por Walter Benjamin. O que conheço das suas idéias é de ouvir falar. Mesmo estas linhas que transcrevi acima, me foram reproduzidas de memória por Henny Gurland, quando a encontrei anos mais tarde em Londres. Depois disso, perdi-a de vista, nunca soube do destino posterior dela e de seu filho. Acabei por me fixar nos Estados Unidos após a guerra, e só agora, exatos quarenta anos passados dos fatos aqui relatados, é que reuni coragem para escrever sobre algo que ainda dói como se tivesse acontecido ontem.
Acredito que sejam as últimas palavras escritas por um dos maiores pensadores do século vinte. A senhora Gurland precisou destruir a carta que as continha, premida pelas circunstâncias ameaçadoras de então. Seguindo as instruções do professor, o manuscrito da mala preta foi entregue a um homem identificado como Charles Marcel numa praça de Madrid depois de contato telefônico.
Naquele dia, retornei rápido para Port-Vendres. Não sentia cansaço algum, estava aérea, despreocupada, com a sensação de que o mundo perdera um pouco do seu peso insustentável. Lembro vagamente de ter encontrado três mulheres na volta, duas das quais conhecia de vista, que também faziam a travessia para o lado ocidental. Conversamos brevemente, trocamos informações sobre o trajeto e nos despedimos. Não dei importância maior ao fato, afinal, eram muitos os que tentavam a sorte nas montanhas naquele período nebuloso.
Poucos dias durou a minha alegria, porém. As más notícias, como de hábito, não tardaram: Walter Benjamin se suicidara em Port-Bou. As autoridades da fronteira espanhola avisaram ao grupo que eles seriam devolvidos à França, faltava-lhes o passaporte com visto de saída da França. Não havia nada a fazer, vigiam novas diretrizes aduaneiras: os vistos de entrada expedidos em Marseilles tinham perdido a validade, legalmente, não poderiam cruzar a Espanha. Os três caíram numa espécie de limbo, uma vez que não possuíam os documentos (cassados) de origem, passavam agora à condição de apatrides, ciganos, não-cidadãos sem eira nem beira.
Vivíamos na era das “Novas Diretrizes”, em que cada escritório governamental de todos os países da Europa parecia dedicar tempo integral a decretar, revogar, baixar e suspender novas ordens e regulamentos imigratórios. Era a barbárie na sua feição burocrática. Sobreviver não era só uma questão de se esconder nos sótãos, porões, campos e florestas, mas também de aprender a passar pelos buracos, desvãos e escaninhos da diplomacia em colapso. Algum funcionariozinho imbecil, em alguma repartição cinzenta, teve uma idéia... e conseguiu quebrar a espinha do Velho Benja!
Il faut se débrouiller, diziam-nos, é preciso ter a audácia e a malícia de cortar pelo nevoeiro, achar um caminho em meio à derrocada geral de valores que as guerras trazem inevitavelmente consigo. A maioria de nós se virava como podia, forjando tíquetes extras de pão e leite para as crianças, contrabandeando remédios para os doentes, ou falsificando documentos, permissões de qualquer tipo; outros, “colaboravam” com as forças de ocupação. Benjamin não era colaborador, nem débrouillard, mas uma dessas plantas frágeis que a civilização só consegue manter vivas em condições ótimas de razoabilidade e delicadeza.
A única certeza que carregava era a de que, nem ele ― e muito menos seus preciosos escritos ―, em hipótese alguma, voltariam para as mãos da Gestapo. O percurso acidentado o esgotara animicamente, estava certo de não conseguir repetir a façanha. Confessou-me durante a escalada que trazia morfina suficiente para tirar sua vida várias vezes, “caso sobreviesse o pior”. E foi o que acabou fazendo, ao ver-se acuado. Pressionadas pela repercussão do suicídio, as autoridades espanholas foram forçadas a revogar suas diretrizes kafkianas e liberaram seus companheiros de viagem.
Recentemente, o professor Gershom Scholem, melhor amigo e curador da obra de Walter Benjamin, me telefonou de Londres; falamos do seu trabalho e daquela sua última caminhada. Ele se interessou por cada detalhe que consegui lembrar, ao final, disse-me que nunca tinha ouvido falar da tal pasta preta, “até agora, ninguém sabia que tal manuscrito sequer existisse”. O mesmo me foi dito por outra amiga dele, a professora Hannah Arendt. Permanece até hoje o mistério sobre o paradeiro daquela mala cujo conteúdo era mais importante do que a própria vida.
Cada época sonha a seguinte. É incrível como um filósofo tão profundo, vivendo enfurnado em bibliotecas, um crítico apaixonado por autores do passado, tenha sido capaz de antever com tamanha lucidez as múltiplas configurações, padrões e formas do mundo contemporâneo. Vivo na América, o maior shopping center do planeta, onde o Velho Benja nunca pôs os pés, e, no entanto, este país encarna como nenhum outro a utopia destrambelhada que ele profetizou. O Hipermercado onde tudo e todos são commodities, Grandville, estão aqui: no sonho orgulhoso de liberdade, na desmesura dos arranha-céus, na imensidão das highways, no mais fútil dos modismos.
Tudo ainda me magoa tanto.
Às vezes me pergunto se a memória me pregou uma peça, depois, penso que não, poderia ter inventado tudo: os Gurland, a route de Lister, as mulheres que encontrei na volta, a patrulha nazista, mas não a maldita pasta preta à qual aquele pobre náufrago se agarrava. O que conteria? Aparecerá algum dia em um depósito velho de Madrid ou Zanzibar? Será que este livro perdido poderia ter aberto os olhos da humanidade e evitado futuras guerras?
Acontece que a sabedoria não se recebe, é preciso descobri-la por si, merecê-la ao final de um trajeto que ninguém pode fazer por nós, do qual ninguém poderia nos poupar ― porque a sabedoria representa um combate, derrota e vitória: ela é um ponto de vista pessoal sobre as coisas. Isto aprendi no alto da montanha.


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

os apátridas (3)



            ― Lisa, você nunca reza? Mamãe está lá dentro, rezando pelo komischer Kauz...
― Hehehe, você tem razão: ele parece mesmo uma coruja. Não, eu não rezo nunca... minto, rezo sim: pra esta loucura em que o mundo mergulhou acabe logo.
― Não consigo dormir, quer que eu fique de guarda?
― Obrigada, José, acho que nenhum de nós vai pregar o olho esta noite.
― O professor me disse que nunca houve uma guerra boa, nem uma paz má...
― Viu só? Não se preocupe, ele é muito inteligente, vai saber se virar.
A cena se gravou feito cicatriz na minha memória. Entre tanta gente que ajudei a escapar, a imagem daquele sujeito franzino no limite das suas forças físicas, e mesmo assim tão agarrado ao seu senso de dever, ficou para sempre em mim. Durante toda aquela noite branca pensei que tinha descoberto uma razão para continuar, havia finalmente um sentido no que eu fazia. Qualquer pessoa vale a pena ser salva de uma morte estúpida e inútil. Como todos os outros, o Velho Benja lutava por salvar a própria pele, a diferença é que, de uma maneira que então apenas intuía, ele o fazia também por nós. Pessoas assim fazem acreditar que a humanidade vale o sacrifício, que a barbárie não terá a palavra final.
Levantamos acampamento antes do sol surgir por trás dos montes; com alguma dificuldade, achamos a pequena trilha ladeada a noroeste pelo rochedo e seguimos, acelerando inconscientemente o passo rumo à clareira, contornando o azinheiro. Lá está ele! Sentado no mesmo lugar, na mesma posição do dia anterior. Sua aparência estava ainda mais amarrotada, a barba por fazer ainda maior, seus olhos de sonhador perdidos como nunca. Atiramo-nos sobre ele num impulso de alegria descoordenada, tropeçávamos uns nos outros, abraçávamos e beijávamos o constrangido intelectual.
Mein schätze, mein liebe Professor, como... como foi...?
― Oh, por favor, não chorem. Estou bem, nada me aconteceu, como podem constatar.
― Sozinho... aqui, ao relento... na noite fria!
― Por pior que seja, o presente é finito, encerrado na esfera do vivido, só a lembrança é sem limites, porque contém a chave para tudo que veio antes e depois. Vamos em frente.
Esquecer e partir. Foi o que fizemos imediatamente, era tudo que fazíamos desde que a praga do conflito descera sobre a Europa, arrastando nossas vidas num turbilhão insensato de sangue e horror.
A subida foi ficando progressivamente íngreme, a trilha, mais e mais interrompida por mato bravo. Mantínhamos a orientação pelo platô dos sete pinheiros à nossa direita. Em certos momentos, a route Lister se aproximava da estrada oficial; antigo passo de contrabandistas, muitas vezes nosso caminho corria encoberto apenas pelo ressalto no bordo da encosta. Acima de nós poucos metros, escutamos soldados do Reich conversando enquanto fumavam numa parada. Prendemos a respiração petrificados, o idioma alemão agora provocava estas reações instintivas de medo.
Enfim, avistamos a vinha que indicava o melhor ponto de travessia da cordilheira. Não havia pista alguma no chão, a inclinação era praticamente vertical; subíamos agarrando as cepas lenhosas, carregadas da uva escura e doce de Banyuls. Pela primeira e única vez, o professor fraquejou, avisando formalmente que a escalada final estava além da sua capacidade. José e eu tomamos o pobre homem nos ombros, carregando a ele e sua bagagem morro acima ― respirava pesadamente, mas não fez uma queixa, nem um suspiro, apenas espreitava minuto a minuto a mala preta.
Quando alcançamos um vale estreito entre os espigões de pedra, paramos para comer. O vento soprava furioso, arrancando o chapéu da senhora Gurland. A água acabara. Comemos pouco, na verdade, ninguém comia muito: primeiro, tinha sido o campo de concentração, depois, o racionamento. Nossos estômagos haviam encolhido, nossos corações, também: estávamos sentados ao lado do esqueleto de um animal, e dois abutres sobrevoavam as nossas cabeças.
Enquanto os outros descansavam, resolvi sair para uma exploração das redondezas. Uma curta volta em meio a rochas escavadas pelo degelo, e então, vi. Lá embaixo, reaparecia o Mediterrâneo: do lado de onde viéramos, a costa francesa, do outro lado, bem à minha frente, o azul do mar da Catalunha. Com o Roussillon atrás, a norte, surgia diante de mim La Côte Vermeille, o mais magnífico arranjo de falésias, morros e vegetação, na qual o outono se divertia exibindo uma paleta luxuriante cobrindo todos os tons de vermelho, ocre, e laranja que existem na imaginação e fora dela. Estava embriagada de beleza e acrodementia, o mal das alturas.
― Se me permite uma citação de Proust, diria que esta é a beleza que nos promete um tipo de felicidade desconhecida, um prazer tão outro, que morremos sem saber que ventura seria essa...
Herr Benjamin, que susto! Não esperava que fosse o primeiro a me alcançar...
― Os Gurland estão vindo já. Senhora, não tenho como agradecê-la suficientemente pelo que fez por nós. É dona de uma grande alma, Fräulein...
― Pare, professor, peço-lhe. Já me fez chorar o que não chorei em meses... Veja ali, uma estrada de verdade! Sigam direto por ela até Port-Bou, têm os visas para atravessar a Espanha e chegar a Portugal, mas isso já está cansado de saber... Não posso me arriscar a ser pega em território espanhol sem visto.
― Adeus, até breve!
― Adeus, vão agora.


sábado, 16 de novembro de 2013

os apátridas (2)


            Aquela era uma jornada sem volta para o Velho Benja (como chamávamos o professor), a senhora Gurland e o filho, José. Não pra mim: meu marido permanecera em Marseilles tentando obter o visto de saída da zona de ocupação. Naquele outono e no inverno seguinte ajudei centenas, talvez um milhar, de pessoas a atravessar a fronteira por aquele caminho, em condições ainda mais adversas e grupos maiores. Chegava a fazer quatro, cinco, travessias por semana, nenhuma delas, no entanto, me marcaria da mesma forma.
            A França tinha virado uma nação em fuga, la pagaille complète, ou o caos total, como diziam os nativos, um país inteiro movendo-se em direção ao sul. Atrás de nós, inúmeras vilas e cidades mortas, lugarejos sem vivalma onde cachorros e galinhas vagavam perdidos, e um único ruído ao longe, trazido pelo vento, o matraquear sinistro das esteiras dos tanques alemães. Nos portos da costa meridional, tornaram-se costumeiros relatos de planos de fuga tão audaciosos como improváveis, multiplicavam-se notícias de navios fantásticos, guiados por capitães de fábula, conduzindo fugitivos com vistos para destinos ignorados por Atlas e passaportes de países que deixaram de existir.
            Não estávamos com sorte. Muito antes da floresta de faias, castanheiros e abetos, na qual caminharíamos mais abrigados, ouvimos comentários dos trabalhadores da vindima indicando a presença de soldados nas cercanias; fomos obrigados a contornar os campos abertos, abrindo passo custosamente por entre touceiras e capinzais densos. Mantinha os movimentos do Velho Benja sob estrita observação: marchava em ritmo lento e incrivelmente constante, sobraçando o calhamaço, consultando o relógio constantemente.
            ― Que tanto confere no relógio?
― Madame, descobri que o máximo que agüento são dez minutos de marcha forçada, por isso é que fico lhe pedindo um minuto de descanso entre estes períodos.
― Posso lhe evitar essa canseira adicional, professor, eu o avisarei...
― Muito grato, porém, só consigo suportar condições iníquas se estiver totalmente absorvido por uma tarefa, enquanto controlo o tempo, ponho a minha mente a serviço de salvar a minha vida.
― Bem pensado. Escutem, vamos parar dez minutos, já estamos caminhando há quatro horas e meia. Senhora, na sua musette temos pão do posto de racionamento, tomates e um arremedo de marmelada do mercado negro. Bebam pouco, por favor, não sei se encontraremos fontes de água na região.
― Com sua licença, será que posso...?
Este era o professor pedindo tomates, o mundo se desintegrando cultural, moral e espiritualmente, mas nada seria capaz de fazê-lo abandonar seus modos de cortesão de Castela. Em qualquer época que vivesse, seria um cavalheiro de antigamente. No inverno anterior, antes mesmo da rendição, o governo francês começou a prender os refugiados do leste em campos de concentração co-administrados pelos nazistas. Meu marido, que o conheceu no campo de Vernuche, perto de Nevers, descreveu assim seu companheiro de prisão numa carta: “... mente aguda e clara como cristal, uma inquebrantável força interior, e o mais despreparado dos seres humanos para os assuntos práticos da vida”.
A cabana escondida por urzes e giestas não passava de um celeiro semi-destruído pela vegetação invasora, e o tal riacho a noroeste estava seco. Seguimos por encostas e vales pedregosos durante mais ou menos duas horas em silêncio. O tempo todo rememorava as instruções de M. Azéma: saia antes do amanhecer, misture-se aos vindimadores na subida, carregue apenas uma musette (pequeno saco a tiracolo), não fale. Guardas de fronteira facilmente identificariam nosso sotaque. As condições físicas do Velho Benja, porém, deterioravam minuto a minuto; sob a barba grisalha percebiam-se manchas vermelhas a tomar-lhe a face. O sol ia alto no céu, todos ofegavam desgastados pelo calor e o cansaço.
            ― Bom, bom, pelo nosso mapa, devemos estar bem perto de uma clareira e...
            ― Lá está, lá está! A clareira, a clareira!
            ― Shh, José, não grite!
            ― Ok, não gastemos fôlego à toa, vamos nos acalmar e fazer uma parada um pouco maior...
            Achamos a pequena trilha com uma ligeira inclinação à esquerda, então, o enorme rochedo a noroeste, finalmente atingimos a clareira. Vi quando o pobre homem desabou na grama exausto. O lugar não era propriamente seguro, e não tínhamos sequer alcançado a metade do caminho. Mãe e filho já aguardavam para partir, mas ele não se mexia.
            ― Você está bem?
― Sim, vou ficar bem. É melhor vocês três prosseguirem, eu fico.
― Como assim, fica?! Não vou deixar ninguém pra trás, além do quê, esta é uma região de touros selvagens, de contrabandistas e lobos... Tem idéia do que pode lhe acontecer?
― Não poderão me carregar montanha acima, nem ao menos até o abrigo. E a senhora, como me protegeria de um touro? Voltem para a cabana, passem a noite lá. Amanhã cedo, continuamos. Se algo me acontecer, a senhora Gurland saberá a quem entregar meu manuscrito na Espanha.
            Acabei por concordar, o raciocínio era linear: o coração dele não agüentaria esforço adicional, sua cota diária se esgotara. Quando partimos, estava sentado numa pedra agarrado à pasta preta ― em nenhuma circunstância largava o cartapácio, sua missão era arrastar aquele monstro e a si mesmo até o outro lado. A garganta me apertava como se fosse chorar a qualquer momento, deixar um homem daqueles numa situação daquelas me angustiava o peito com o peso de todas as montanhas dos Pirineus. Era uma situação de pesadelo, sentia-me largando um parente querido, abandonando uma criança sozinha no meio da floresta com a promessa de retornar na manhã seguinte.


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

os apátridas (1)



Port-Vendres, Pireneus Orientais, França. 25 de setembro de 1940.

            Na minha frente estava um homem de olhos pensativos atrás de óculos grossos aparentando bem mais do que os seus quarenta e oito anos, um menino de quinze e a mãe dele; à nossa frente, uma cadeia de montanhas e horas de escalada íngreme, margeando estradas por onde circulavam patrulhas francesas e alemãs. A Espanha ficava além das escarpas, dali em diante, era o mundo livre. Deveria guiá-los sozinha pela trilha mais a oeste, depois que a Garde Mobile fechara a estrada do cemitério de Cerbères, a passagem mais difícil, a de maior altitude e dificuldade. Eu desconhecia completamente la route de Lister.
            ― Minha senhora, aceite nossas apologias pela inconveniência, o senhor seu marido disse que poderia nos ajudar na travessia para a Espanha...
            ― Ele disse, é? Acho que essa é mesmo uma coisa que ele diria... mas talvez não tenha lhe dito que esta vai ser uma maratona vertical, disse?
            ― Tudo vai ficar bem, espero... que seja seguro. Sou doente cardíaco, teremos de andar devagar. Na viagem de Marseilles para cá, encontrei a senhora Gurland e seu filho. Pode levá-los também, senhora Fittko?
            ― Cardíaco?! Começamos bem... se essas são as boas, agora, as más notícias: primeira, ficamos reduzidos à metade da água e mantimentos; segunda, não sou a melhor guia pra esta região, na verdade, nunca fiz a rota oeste, tudo que tenho é um mapa desenhado de memória pelo prefeito. Topam o risco?
            Todos aceitaram. O maior risco seria esperar, ponderou o professor. O crescente trânsito na fronteira intensificara a vigilância, cada dia era mais perigoso que o anterior. Na guerra vivemos num presente aplastado, de traição, camaradagem, confusão e terror generalizados, sem nenhuma fresta de futuro, os dias nascem únicos, monolíticos, e o amanhã se distancia na bruma das miragens incertas. Não se desperdiçam oportunidades nem tempo, em tempos de guerra.
            Um dia antes estivera em Banyuls-sur-Mer, no gabinete do prefeito. Monsieur Azéma trancou cuidadosamente a sala com duas voltas da chave, para só então descerrar um sorriso de luminosa bonomia mediterrânea. Contou emocionado os lances da passagem usada pelo lendário general Enrique Lister, comandante do exército republicano, a quem dera apoio durante a Guerra Civil. “Ali se lutou pelo mesmo motivo desta guerra: fascismo ou república?”, teorizava o antigo militante socialista. Mostrei-me interessada na possibilidade de haver uma trilha. “Pouco provável, já são mais de três anos sem uso. Veja: as curvas a fazer pelo meio de descampados e áreas cultivadas, até atingir a floresta; dali, siga o riacho a noroeste e chegará à pequena cabana escondida entre urzes e giestas; quando avistar o platô dos sete pinheiros, mantenha-o sempre à direita ou vai cair muito ao norte; finalmente, a vinha que conduz ao ponto certo de atravessar a cadeia de montanhas. Depois do topo, já é a Espanha.”
            Estas instruções, rabiscadas a lápis num papel manchado, me pareciam pouco mais do que os mapas do tesouro das brincadeiras de criança. Mas era este guia que eu apalpava, dobrado no bolso das calças, enquanto reunia meu grupo de falsos camponeses saindo pra trabalhar às cinco horas da manhã. Era um começo de outono seco, o clima prometia calor insano na caminhada e frio na travessia dos picos.
            ― Professor, o senhor foi aliviado de carga, só pra levar essa pasta preta abarrotada de documentos?! Além de se cansar à toa, compõe o pior disfarce de lavrador francês que já vi.
            ― Este é o meu novo manuscrito...
            ― Mas, por que trazê-lo um peso destes na viagem? Veja só, o senhor arqueia com o peso!
            ― Senhora, precisa entender que esta mala é a coisa mais importante para mim. Não posso me arriscar a perdê-la. É o manuscrito que deve ser salvo, ele é muito mais importante do que eu neste momento.


sábado, 9 de novembro de 2013

a escolha do Supremo (final)


― Vem cá Gaúcho, duas mil e seiscentas, e mais uns quebrados?!
― Pelo menos! Essas são as cadastradas no sistema, fora as que a gente pega por aí e nem põe no currículo...
― Não dá, cara, é muita precheca!...
― Já fiz a conta, a média dá quase uma mulher a cada dois dias. Claro que não sou trouxa que nem os manés que vão no Bamboa, no Photo, no Bahamas, e pagam trezentos, quinhentos, por um programa que sai por cenzão na Augusta. E são as mesmas minas!
― Ah, sei não... vamos auditar esses números, a gente tem aí o cadastro do Casarão, não é?
― Isso mesmo, o dono ali é o cara, tem várias franquias, e lá não tem tempo ruim: é de segunda a segunda, a qualquer horário. Trinta e cinco pro quarto, mais bebida, o resto é da vagaba.
― Então, o mala tem mais de três mil no cadastro, e você, Gaúcho, tá dizendo que papou a maioria delas? Mano, tu gastou um picho nervoso em buceta!
― Ah tá... pelo menos com o sexo pago a gente sabe quanto custa, pra mim saiu duzentos e cinqüenta mil. Ponto. Em vez de carrão, gastei em mulher; meu sonho de consumo é chegar no scout do Renato Gaúcho: cinco mil.
― É, mas o cara sendo jogador de futebol, celebridade, fica mais fácil... Nunca te aconteceu de se apaixonar, tipo, ficar de love, a mina fazer no amor...
― Hã-hã, meu negócio é dar uma. Acabou? Próxima. A fila anda e a catraca gira. Toda vez que eu vejo um otário sair de mão dada pro quarto com a vadia, já começo a rir.
― Gauchão não quer romance, negócio dele é pontuar!
― Ah não, ficar de mô-mô pra cá, benzinho pra lá? Tô fora. A melhor maneira de sair de uma folie à deux é com um ménage à trois, uma paixão platônica se cura com uma trepada homérica!
― Hmm, mas então... se pá, capaz de tu ter papado a patroa do Futuro Sogro! Quer dizer, na época que ela tava na viração...
― Ei, ei, muita calma nessa hora... Vamo deixar mulher de amigo de fora da conversa, como dizia o meu avô: nunca beba sozinho, não jogue a dinheiro, nem coma a mulher do próximo, esse é o segredo da vida longa e sem encrencas.
― Ah, mas que pode ter acontecido, lá isso pode...
― Putanheiro de responsa come, paga, e vaza. Olha, pra cês terem uma idéia, já fui expulso de suruba por mau comportamento, mas comigo não tem essa de talarico... mulher dos outros pra mim é homem.
Os moleques ainda ficaram me apertando durante uma hora, mas não abri o bico. Não sou besta. A verdade não é coisa que se publique em jornal, muito menos se pode soltá-la na internet, ou em papo furado de mesa de bar. O fato cru e cozido é que sou um especialista em mulher da vida, enxergo de longe, elas podem estar vestidinhas de santas na balada, no shopping, na missa, na praia, em festa chique de gente bacana. Reconheço na hora que bato os olhos, e elas também.
Foi assim com a ucraniana do Aber e com a esposa do Futuro Sogro, que tracei depois de estar casada com o coitado. Pra não dar B.O., paguei o serviço de ambas. Não sou chegado em diz-que-me-diz-que, sexo pago sai sempre mais barato. O resto é contorcionismo de nego que quer tirar as meias sem tirar os sapatos. Exibicionismo barato.
― Senhoras e senhores, caros colegas, hoje, pela primeira vez numa escolha do Supremo, o aniversariante (eu, Gaúcho) fez o bolo que será em breve servido a todos. Isto não foi por acaso ou capricho, pensei muito sobre a melhor maneira de pôr em relevo a razão do meu voto, que coincide com a visão desta empresa na qual trabalhamos, nossa missão junto aos clientes e parceiros nesta jornada de quinze anos. Por que, no fim das contas, o que é a 1Q84? Uma empresa de serviços. Portanto, nosso trabalho é servir, entregar produtos e serviços de qualidade que facilitem a vida dos nossos clientes, que, por sua vez, servem aos seus próprios clientes e ao público em geral. Peço a vocês que reflitam comigo sobre a arte de ajudar, assistir a quem precisa, este equivalente comercial do amor ao próximo, tão pregado pela cristandade; pensem nisso: que pode haver de mais nobre do que servir a uma grande obra, colaborar no desígnio maior, aquele do Ser Supremo? Servir a Deus tem, desta forma, o valor máximo; servir aos outros, é a decorrência natural. É necessário ter a coragem de servir à sociedade, pois esta é uma servidão que liberta, ao contrário da desobediência às regras, geradora da violência e da baderna. Na desordem, perdemos todos, sem lei e sem um propósito, o ser humano cai na tirania do todos contra todos: o mundo Mad Max. Perdido o comando, abandonado o sentido de comunhão e serviço ao próximo, mergulhamos no pior dos cenários, aquele no qual, em vez de servir aos melhores, somos escravizados pelos brutos. O que é melhor?, ter um senhor, ou ser tiranizado por vários? A verdadeira essência do servir não é a obrigação, o “tenho que fazer porque me mandaram”, não, meus caros, a potência contida nesta aptidão humana vem da devoção, a devoção a uma idéia. Um punhado de homens e mulheres determinados por uma idéia comum pode conter um exército de milhões; lembrem dos Trezentos de Esparta: para resistir ao invasor bárbaro, antes é preciso se tornar sujeito grego. Ora, sujeito, súdito, cidadão, é aquele que se sujeita a uma idéia-guia, um conjunto de valores, e por isso mesmo, passa a ser dono do seu destino. (...) Aprender a viver é aprender com derrotas e perdas, as vitórias vêm em conseqüência deste aprendizado. A todos aqueles que aspiravam à Supremacia Bourne, peço que aprendam a perder. A vez de cada um chegará, havendo o merecimento. Então, pra encurtar a história, and the winner is...”


domingo, 3 de novembro de 2013

a escolha do Supremo (4)


Se eu tivesse que arriscar uma hipótese ousada, diria que grande parte dos adultos não ultrapassa algum estágio determinado da infância, e que, por este motivo, a face da maturidade decalca invariavelmente uma caricatura da meninice. É como se o homem feito fosse um filho eterno da criança que foi ― e nunca deixou de ser. Ninguém cresce muito.
Tempos atrás, a rapaziada da firma resolveu marcar a happy hour de sexta feira num puteiro. Embora relutando por ser o chefe deles, acompanhei-os. A zona é a minha segunda casa, modéstia às favas, manjo tudo da etiqueta do brega, posso dizer, sem me achar a última bolacha do pacote, que conheço biblicamente a maioria das meninas do meio, suas tretas e comédias. Fato: elas vêm de lares desestruturados; mito: as que ficam na vida, gostam do rock and roll; fato: beijam, sim, na boca; mito: gozam, de verdade e não; fato: fazem um bom pé de meia, e se estabelecem; mito: cafetão já era, quase todas se autoempresariam. Amor verdadeiro, se pintar, entra de sócio; dono, só do coração.
O puteiro é um lugar perigoso para as almas juvenis. Seu ambiente de farsa feérica, o clima de parque temático dos encontros furtivos, emana neblinas que inebriam os virgens no mel da sedução feminina. Pois foi nesta visita que o Futuro Sogro, uma lamentável figura que usava enchimento na cueca, conheceu a esposa. Enquanto o infeliz não subiu ao altar, sofreu um calvário de chacotas dos colegas; uma vez amarrado na cruz do matrimônio, porém, estava criado o impasse: ninguém se atrevia a zoar um sacramento. O nascimento da filha do casal deu o mote.
― Aí moçada, olha aí as fotos da minha princesa...
― Puxa, parabéns, se tem um cara que merecia essa alegria era você...
― Como se chama?
― Brenda. Que foi... que silêncio é esse? Cês não gostaram do nome?...
― Bem, quer dizer... é que, tu não deu só um nome pra tua filha, tu deu a ela uma profissão!
― ... das mais antigas...
Num dado momento, tivemos de fazer uma escolha: ou permitir todos os apelidos, ou proibir geral. O que é do homem, o bicho não come. Senão some. Não teve jeito. No caso do meu sócio, a opção liberatória envolveu certas delicadezas: já era público o seu hábito de freqüentar sessões de swing, como ele mesmo frisava, um programa familiar, com a mulher, e coisa e tal. Até aí não havia irregularidade, segue o jogo. O detalhe foi uma certa festa de fim de ano na Nefertiti, famosa casa de sexo grupal.
― Escuta, cara, sabe com é, a notícia vazou nas redes sociais...
― É... não adianta esconder, o que aconteceu, aconteceu... Agora, nego por aí tem uma boca mole do carai... ― e olhava em volta, procurando adivinhar a identidade do dedo nervoso.
― Mas... ela, ela  tava lá com quem?...
― Com quem?! Ora, com quem?, com o inútil do marido dela! É foda, o camarada não tem o direito de ir com a patroa na casa de swing, sem ter que dar de cara com a mãe e o padrasto?
― Pensa pelo lado bom: sua mãe tá aproveitando bem a ajuda mensal que cê dá pra ela...
― Mamma Mia!
― Ah, cês tudo vão ralar o cu nas pedras, nessa porra de empresa mais se fala que trabalha!
A escolha do Supremo é um sufrágio à maneira germânico clássica: há apenas um grande eleitor, o aniversariante do dia. Um verdadeiro mistério a popularidade de que desfruta. O Supremo é simplesmente o cara que recebe a primeira fatia do bolo, nenhum outro privilégio, nada de imunidade ao trote dos companheiros durante o seu “reinado” ― que dura até ao próximo aniversário. Há um mandato extremamente curto, quando dois fazem anos na mesma semana. Não obstante, cria-se um frenesi em torno da escolha, com apostas a dinheiro, intensa especulação, palpites, cotação dos top five, campanhas por determinados candidatos, etc.
No passado, houve casos de fraude eleitoral, com compra de voto, jogo-de-comadres (eu te escolho, você me escolhe), escolhas de protesto, ou de bajulação, e tudo mais que faz parte do barro demasiado humano. A solução foi obrigar o eleitor a justificar sua preferência proferindo um discurso, o qual é julgado no seu grau de sinceridade. Uma escolha fracamente defendida, dá origem a um Supremo pouco considerado.


quarta-feira, 30 de outubro de 2013

a escolha do Supremo (3)


O Deus de um homem é o monstro do outro. De resto, o que se faz na vida é jogar. Tudo pode fazer parte do jogo no grupo de doze pessoas que trabalham na 1Q84, salvo política e religião. Menos pela primeira que pela segunda, em pouco tempo ficou evidente a necessidade de impor limites de cima pra baixo; maiormente por causa da bancada evangélica: majoritária, multifacetada e proselitista. Com o poder de Cristo não se bole.
Adotamos o sistema japonês: uma bancada contínua serpenteia em ângulos retos através do escritório, não há paredes, salas fechadas, nem divisórias, cada um dispõe de uma porta de armário, uma cadeira, um terminal e, eventualmente, alguns servidores. Todos vêem e ouvem todos, o tempo todo. Ninguém está imune à zoação geral, exceto o Capo di tutti i capi ― embora soe pretensioso, tive de proteger o Todo Poderoso de qualquer possibilidade de caçoada ou assédio moral.
Administrar pessoas não é brinquedo, aprendi errando.
Originalmente, era um bom programador para automação comercial, desenvolvi o sistema carro-chefe da empresa há quinze anos: um programa estável, eficiente, interface intuitiva, pouquíssimos bugs. Associei-me a um vendedor ambicioso, o Mamma Mia, e criamos uma empresa de serviços bem sucedida no altamente competitivo mercado de tecnologia da informação. O organograma é enxuto: são dois níveis hierárquicos, dois sócios e dez pê-jotas contratados; e três categorias funcionais: vendedores, técnicos e programadores.
― Gaúcho, tô cheia de todo mês ser a campeã de vendas e também das reclamações internas...
― Você é ninja, menina, tem o DNA do marreteiro: fala mansa, chavequeira e com sangue nos zóio pra vender... Natural que a turma aqui dentro chie, você promete até casamento pra fechar a venda, depois os outros que se virem pra entregar...
A Gogrila é assim, vendedora nata, viradora, capaz de convencer esquimó a comprar freezer, mas o nível da baixo-estima dela oscila perpetuamente entre a meia e a sola do sapato. Com ela, tenho sempre que elogiar, apoiar, mostrar a face dourada da pílula amarga.
― Pô, mas os cara não dão uma folga, ficam no meu pé o dia todo, feito band aid.
― Don’t worry, be happy, com eles eu me entendo. Como é que tá o papo com a rede de magazines? Se entrarmos lá, ficamo bonito na foto!
― Humm, não quero nem falar pra não zicar, mas já tou com um pé e meio lá dentro!...
Um belo dia, ela resolveu trazer no escritório o imbecil com quem namora, noiva, desfaz o namoro/noivado, volta, rompe novamente, há uns oito anos. Um animal de tetas que a destrata publicamente, desdiz diante dos amigos, fala errado ― e ainda por cima ganha menos da metade do que ela ganha. Foi o suficiente pra que surgisse uma nova criatura mitológica no nosso bestiário: o Gogrilo. O namorado, ou noivo, ou ex-atual, ou seja lá o que for, ostentava um tórax largo como o de um gorila... encimando umas perninhas de grilo. Quem o Gogrilo ama, Gogrila será.
A natureza humana não tem forma definida, aparece e desaparece como uma fantasmagoria, foge ao entendimento, esconde-se na região nebulosa das crenças, do acaso, das taras. Qualquer um dos meus funcionários poderia ser o patrão. Por que isso não acontece? Difícil explicar. Há um misterioso mix de timidez, auto-sabotagem, infantilidade, ignorância e acoelhamento, que impede a maioria das pessoas de atingir seu potencial.
            O caso mais intrigante pra mim é o Dozão. Negrão de um metro e oitenta e cinco, gênio autodidata da programação, killer no design de software, e, no entanto, um ingênuo capaz de cair na mais manjada das casas-de-caboclo.
― Fala aí, meu irmão, um negão dessa idade... é verdade o que dizem?, quer dizer, o tamanho da mandioca...
― Ah mano, aqui é dozão...
― Dozão?! Dozinho, isso sim, pô meu, isso daí é um isqueirinho bic!...
― Quer deixar eu falar?
― Caraca, doze? Hahaha! Um gambitinho de sabiá...
― É, é! Com esse palito de fósforo tu deve fazer a mulherada gozar... de tanta cosquinha!
― Cês querem me ouvir, porra, é dozão... mole! Mole, entendeu?!
― Não é mole, não, fio, um homão desse com um gancho de toalha de rosto...
Dozão ficou ensandecido, virado no cão, saiu feito um louco, o rosto distorcido num esgar de louco, os olhos injetados, prometendo que íamos ter de engolir aquela palhaçada. Ninguém entendeu nada, até que, uns quarenta minutos depois, ele liga de casa e põe a mulher na linha. Alguém apertou a tecla do viva-voz, todos pararam de trabalhar pra escutá-lo.
― Mulher, faça o favor, conta pra eles, vai... fala o tamanho da criança, vai!
― Desculpa gente, o Sebastião chegou aqui falando meio estranho, ele andou bebendo? Nem sei que história de centímetros é essa, ele inventa muito, não deve ser isso tudo que ele tá falando...
Em resumo, esta escolha do Supremo cabe a mim, na qualidade de aniversariante do mês. Ainda não decidi. Na minha lista tríplice despontam o Psai, a Gogrila e o Dozão.


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

a escolha do Supremo (2)


― Tou falando procês... rapaziada, é a Primavera do Leste Europeu, a ponta de estoque desses países vocês não acham aqui nem no shopping de luxo: Estônia, Lituânia, República Tcheca, Albânia, Valáquia, Ucrânia...
― Tá bom, tá bom, mas daí a dizer que a Ana Hickman na Ucrânia não serve nem cafezinho, é meio over...
― Que nada. Lá ela não paga pule de dez. Vou trazer a Olienka aqui pra cês babarem na gola. Só não pode encostar a mão na minha deusa do Cáucaso...
― Escuta, Aber, na real, tu comprou essa ucraniana?!
― Bem, essa é uma maneira feminina de colocar as coisas... são os azares da globalização, prefiro pensar que estou ajudando uma família em apuros. Mas é que os coitados... lá rola uma pindaíba sinistra: crise econômica, invernaço de quarenta negativos, meu, se faltar aquecimento morre metade da população!
― Abre seu Face, mostra as fotos senão ninguém acredita ― eu já conhecia a Olienka, uma loiraça difícil de tirar os olhos de cima, um metro e meio de pernas ―, além de quê, com o seu retrospecto, quanto menos gente você apresentar ela, melhor...
― Hahaha, na boa, Aber... quanto?
― Aí é que a coisa fica linda: mando o equivalente a mil e quinhentos por mês, acho que uns dez ucranianos sobrevivem dessa grana. O melhor é que a sogrovska me idolatra, e ainda vive do outro lado do mundo. Melhor que isso, só dois disso...
― Pô, meu, picanha de primeira... certeza que a Sharapova aí deve ter umas amigas da hora pra apresentar pra nóis!
― Muita calma nessa hora, isso ainda não tá ao alcance da classe C... primeiro, a passagem aérea da Ucrânia é uma bala, e depois, ela exige passar o Natal com a família. Fora os gastos dela aqui, correndo por minha conta. Bom mesmo era quando ela não falava uma palavra em português...
O Aber talvez seja o ser mais humano que conheço: consegue a proeza de ser digno de desprezo, inveja e pena no mesmo grau e proporção. A firma dele presta serviços à minha, judeu arquetípico, é sócio do irmão e mora com a mãe aos cinqüenta anos de idade. É um serial corno. Recusa-se a entender porque a mulherada dá com o pé na bunda dele depois de seis meses, em média. A última foi um verdadeiro nocaute egóico: meteu-lhe uma galhada de envergonhar as renas do Papai Noel, deu até pro moto boy da empresa.
E com a ucraniana a presepada já começou, ou antes, recomeçou. A mãe não deixou o Aber morar com ela, solução: instalou-a num flat. O tontão virou entidade mantenedora, enquanto a Olienka, que progride na língua a olhos vistos, tratou de estabelecer convênios alternativos. A situação nas ex-repúblicas soviéticas não está bolinho pra ninguém.
Sem perceber o que até surdo vê, o paspalho acha de usar camisas da marca Abercrombie & Fitch ― sim, isso mesmo, a marca de roupas norte-americana cujo logotipo é um frondoso alce. Daí pro pessoal começar a chamá-lo de Abercrombie foi um passo, a abreviatura Aber veio como conseqüência natural. “O chifre é próprio do Aber, o alce usa de enxerido”, virou trending topic na 1Q84.
Quando contratamos um funcionário é sempre a mesma água: na entrevista inicial comparece o homem (ou a mulher), mas quem vem todos os dias pegar o batente, é a criança. Incrível o quanto as pessoas regridem num grupo relativamente fechado. É como se voltassem ao tempo de escola, ou até àquele manicômio primeiro e primordial, a família. Mais incrível ainda é o fato de ser o enforcado, invariavelmente, a trazer a corda que o enforca.
― Boa tarde, senhor, isso são horas?
― Foi mal, chefia, teve fuzuê no trem, acabou que atrasei...
― É, Gaúcho, perdoa aí, o cara mora na zona Lost, dois pontos depois da pequepê, lá onde o vento faz a curva.
―... e onde o Judas perdeu as pregas!
― Ih, mano, foi mó resenha... bem do meu lado, o CPTM com gente saindo pelos tampo, maluco tava lá descascando uma bronha na maciota... disfarçava com uma pastinha, daí, na hora de gozar, o mané largou a pasta e borrifou em cima de uma mina. A mulher começou a berrar, armou um bafafá do carai, os passageiros foram pra cima dele... nego só não foi linchado porque os guardinha da estação seguinte apareceram.
― Hmm, suspeito... borfaram na sandalinha...
― A pergunta que não quer calar: sobrou uma gala espirrada pro teu lado?
― Que nada, mano, eu tava esperto. Maluco tinha pinta de ser treze, deu até dó o jeito que a fuça dele ficou... O cara tem que ser discreto. Eu, por exemplo, quando tô na necessidade, bato uma aqui no banheiro...
Pronto, falei. Morria desta forma o cidadão Kléver da Silva Gomes, e nascia o instantaneamente famigerado Gozadinho. Além da alcunha, o mané ganhou dos colegas a cronometragem rigorosa de cada uma das suas idas ao toalete, aliás, hoje todos evitam usar o banheiro depois do Gozadinho. E também mudou a forma comum de saudação ― inclusive com as mulheres ―, adotou-se o cumprimento black: punho contra punho, ambos fechados.


sexta-feira, 18 de outubro de 2013

a escolha do Supremo (1)



            ― Perfeito, sem problemas. Agora arredondou, a coisa vai sair redonda desse jeito... tá, tou mandando agora mesmo um e-mail... isso, com o meu de acordo... Hmm, isso daí vou ver com ele e te retorno ainda hoje. Quem vai trazer? Ah, sim, o Daniel...
― Daniel, Daniel... Daniel Boone!
― João Paulo e Daniel.
― Danny DeVito!
― Ei, ei, peraí, tem certeza que Danny vem de Daniel?
― Claro que vem, seu sem noção, já viu americano chamar Danilo?
― Mas ele é americano? Pra mim, era italiano...
― Se for assim, Dan Brown também pode!
― Daniel Day-Lewis.
― Daniel e Samuel.
― O, o… o James Bond...
― Daniel Craig!
― Não vale, essa era minha!
― Daniel na cova dos leões…
― O quê? Chupa essa manga: Daniel Harry Potter.
― Chupa tu, cabeção, é Daniel Radcliffe!
― Daniel, o cantor.
― Já foi: esse é o Daniel do João Paulo...
― Daniel Filho.
― Oziel e Daniel.
― Continuando no sertanejo: Gustavo e Daniel.
― Daniel Passarella.
― Daniel... la Mercury!
― Não pode! Já decidimos que é pra ser exatamente...
― Ah, mas é Daniella com dois ‘eles’. Pra quem sabe ler, um pingo é letra.
― Daniel Barenboim.
― Essa não! Daniel Boeing?! Vou dar já um Google, esse cara tá inventando, não é possível!
Mas era. O Psai tinha ganho aquela.
Assim começava uma das mais populares tradições culturais da 1Q84. Sem nenhum motivo explícito, às vezes por causa da repetição, ou de uma entonação diferente, uma palavra ou conceito eram destacados do discurso corrente e se tornavam a senha de um concurso de associações. Ganhava quem achasse o último exemplar, podiam ser nomes, sinônimos, partes de listas, verbos, acrósticos, símiles, quase qualquer coisa.
E havia ainda o fenômeno associado: a proliferação das regras, que deviam ser aprovadas por unanimidade, e que, uma vez sancionadas, ninguém esquecia nem ousava desrespeitar. Vários jogos internos surgiram por geração espontânea na empresa nestes quinze anos de existência, mas nenhum alcançou o grau de adição da escolha do Supremo.
Outra mania, menos inócua, são os apelidos. O Psai, por exemplo, não ganhou o nom d’artiste em homenagem ao saltitante coreano do Gangnam Style, vem de Psycho mesmo. Não que o Edilei não faça jus à fama, mas o recado é direto demais, cru demais. Tentei chamá-lo de quatro-e-um, em referência à hora fixa em que ele se levanta e, simplesmente, vai pra casa. Entra às sete, sai às quatro, não fala com ninguém, não aceita gozação ― o que, claro, pendura nas costas dele o alvo do bullying geral assim que deixa o ambiente.
Porém, verdade seja dita, o Psai é o melhor técnico que se poderia encontrar. Mito. Resolve qualquer problema de hardware ou software que lhe botamos na mesa. Quase não conheço a voz dele.
A 1Q84 foi batizada assim por causa do conjunto que ocupava no treme-treme do centrão da cidade quando começou. Naquela época, ainda nos chamávamos Global Network Services, nome que perderíamos dois anos mais tarde: um cara de uma banquinha de celulares já tinha registrado. É Flórida. E, desta vez, mesmo com várias sessões de diarréia mental, não chegamos nem perto de um consenso. Mais por desistência que por convicção, ficou desse jeito mesmo.