sábado, 28 de junho de 2014

Blecaute (1)



            “Onde você está?”
“Aqui.”
As segundas feiras também são tuas. Junto com todo o resto.
Ele pensou.
É preciso o caos em si para dar à luz uma estrela dançarina. Foram necessárias umas poucas horas de blecaute para confirmar, ponto por ponto, as suas doutrinas por tantos anos ridicularizadas.
Não era a melhor ocasião para um ajuste de contas com o seu passado, no entanto, comprazia-se mentalmente imaginando o terror pânico em que se encontrariam seus críticos.
“Achou as velas?”
“Sim, estão comigo. Vamos pegar as mochilas.”
O horror se alastrava na cidade e no mundo com a sanha dos grandes incêndios naquele instante. Pessoas de olhar perdido vagando em busca de familiares. Saques generalizados pelas ruas.
Parou. Esperou que o alcançassem.
O odômetro da bicicleta marcava 12,3 Km. Ainda não haviam deixado o aglomerado urbano, mas já estavam na rodovia que os levaria para longe do perigo maior. Uma jornada de sessenta e seis quilômetros no total, caminho seu velho conhecido.
Avançavam cautelosos pedalando pelo acostamento ou entre os carros, abandonados no megacongestionamento que paralisara as autoestradas logo no começo do apagão. A população em fuga desordenada simplesmente entupira as rotas de escape tanto na direção do litoral como do interior. Os faróis dos veículos desertados pelos ocupantes iluminavam a pista escura auxiliados pelo brilho ralo da lua minguante.
Por trás dos morros no céu noturno vislumbravam as projeções alaranjadas das labaredas erguendo-se atrás deles, na direção da cidade. Estrondavam explosões ao longe, constantemente, ouviam os estampidos secos dos tiros.
“Cadê nossa filha?”
“Ficou um pouco pra trás na subida, o Bob está com ela.”
“O essencial é agrupar. Só vamos conseguir se estivermos juntos. Hmm, não me agrada fazer isto de noite...”
“Nem a mim. Mas a gente não tinha escolha, a cada minuto a situação piora.”
“Aconteceu exatamente o que eu sempre disse: os grandes ajuntamentos de gente se tornaram ratoeiras a ser evitadas.”
“Vem pra cá filho, vem.”
Sim, tudo acontecia como ele sempre previra.
Sentia-se vingado e ao mesmo tempo abismado com o que presenciava à sua volta. Jamais duvidou que seria daquele jeito, mas reconhecia internamente um contragolpe de susto com a realização integral das suas conjecturas. Como se aquela catástrofe espetacular estivesse desde sempre destinada a ser crida, preparada, até ardentemente desejada, mas nunca de fato vivida.
Encare a realidade de outra forma, que a vertigem passa.
Isso ele passara a vida dizendo aos outros. Agora precisava repetir o mantra a si próprio e ao seu grupo de sobreviventes: a mulher, o filho caçula, a filha e o namorado dela. O moço percebeu de imediato a impossibilidade de retornar ao distante bairro dos pais, juntou sua scooter aos quatro bicicleteiros em retirada.
Não previra esta possibilidade: uma boca a mais. De toda maneira, um rapaz no auge da força não era auxílio desprezível numa situação extrema; pesava nos contras o fato de o Bob ser virgem em qualquer tipo de treinamento.



quarta-feira, 25 de junho de 2014

o silêncio é mudo



as nuvens passam

carregadas

de sonhos

tudo que vemos

é Vênus

ainda temos

Mercúrio

morte

Marte

morte

tanta falta

de arte

com sorte

vem Júpiter

ou retorna

Saturno

Urano

Netuno

Plutão



domingo, 22 de junho de 2014

Preparação: sustentabilidade, resiliência e paranóia



            Seres humanos, ou ,mais propriamente, urbanos.

            Sobreviver nas megaurbes contemporâneas, paradoxal aventura de auto-organização e suficiência emergencial. Excesso e carência. Sociedades intensivamente administradas engendram um tecido desigual e poroso onde as novas ações políticas se configuram como estéticas.

            Nem Karma, nem Apocalipse ou Juízo Final, o inferno é assim, este agora. Vivemos, e viveremos cada vez mais, sob o signo do caos e da precariedade. Necessitamos aprender/desenvolver/intercambiar técnicas avançadas de convívio em situações extremas.

            Resiliência e Sobrevivencialismo. Sustentabilidade em meio ao insustentável.

            Mapear cenários de exceção, categorizar os Armageddons possíveis, estabelecer planos de evacuação, de manejo de sementes, agricultura de subsistência, etc.; todas essas medidas podem ser insuficientes para lidar com o fim dos nossos pequenos mundos de consumo narcisista.

            Não é porque você é paranóico que não estão atrás de você.

            A Editora TIJD apresenta o livro Os Preparadores, reunindo sete histórias no gênero já clássico do worst-case-scenario. O primeiro manual do sobrevivencialismo literário em nosso meio propõe-se como uma pergunta: quais histórias você levaria na sua mochila para o deserto do Real?



Local: Hussardos clube literário, rua Araújo 154, 2º andar
Dia: 27/7 das 16 às 19 horas

quinta-feira, 19 de junho de 2014

como conheci minha irmã (final)


            ― Pra você, tudo é muito simples, se é pra defender seus interesses, você vai pra cima de quem for. A lei me dá direitos pelos anos que estamos juntas, e moralmente sua mãe reconhece, pus pão e leite nesta casa sozinha enquanto você crescia... ― Dila começava a abaixar a máscara. Prefiro.
            ― Não acredito que vai permitir esse absurdo ― encarei minha mãe duramente, ela escondeu o rosto no lenço ― A casa da praia foi construída com o suor dos seus pais, você não vai nem esperar a vó morrer pra fazer essa loucura?
            ― Entenda, meu bem, a vida não é fácil, a Dila foi muito legal com você, a Raquel... e comigo... ― recaiu no chororô.
            ― Quem não está entendendo é você, mãe, mais uma vez estão se aproveitando da senhora. E desta vez com o seu de acordo! Que mais vai ser? Ela leva também os móveis, a máquina de lavar, a TV, as samambaias?
            ― Tudo tem que virar uma discussão sobre coisas materiais?, há bem mais aqui pra resolver do que dinheiro, bens, tem o lado humano, da convivência...
            ― Lado quê?! Só o que eu estou vendo é você adiantar o seu lado, Edilamar. Você quer levar na maciota, dar a coisa por fato consumado, e fica nesse quas-quas-quas de lado humano, mas na real está se crescendo pra cima de uma pessoa que cuida de duas velhinhas!
.― Sabe, rapaz, às vezes fico tão feliz de te ver crescendo na vida, justificando todo o sacrifício que fizemos por você, mas outras eu me pergunto que tipo homem está se tornando.
― Quer saber mesmo, Dila? A única coisa que cai do céu de graça é chuva. Sou o tipo de cara que não gosta nada, nada, que façam ele de otário. Morou? ― o tom, entre condescendente e cínico, daquela a quem já havia chamado de mãe Dila começava a me tirar do sério.
― Hã-hãm... ― minha irmã pausou o bate boca durante escassos segundos, suficientes para dispersar o clima. Ficou por aí.
― São combinações que já estão acertadas, querido, melhor agir com a cabeça nessas horas. O casamento acaba, mas a família continua... ― mamãe conseguia terminar de me irritar passando o pano praquela velhaca.
― Há um detalhe ― neste ponto ela voltou o rosto na direção da mudinha ― a Raquel vai ficar comigo.
Ninguém conseguiu falar durante um bom bocado, apenas ficamos ali, comendo mosca na sala povoada de dores passadas e presentes. Naqueles minutos imensos de tédio enraivecido, senti a passagem de uma presença: o rio subterrâneo que corre pelos porões da imaginação, e que, no entanto, determina todo o relevo da nossa vida de superfície. Os quatro se levantaram. Depois, sentamos novamente, mudando uma posição no sentido anti-horário. Raquel arrastou levemente o sofá de um lugar ficando mais próxima a Dila.
― Então é assim que a família continua, dividida ao meio?! Abre o olho, mamis, a bola nas costas que você tomou é dupla!
― Escuta aqui, cansei das suas provocações. Você espreme tudo e todos que encontra, o resultado disso é que perde o limão, a limonada, e no fim só há bagaço à sua volta. Onde você pisa nem erva daninha cresce.
― Tá de boa, né Dila?, aposentou pelo estado e pela prefeitura, dá uma reformada lá em Mongaguá, e pronto, cama, mesa, banho e roupa lavada. Sensacional essa sua mentalidade de funça, amarrou o jegue na sombra, aí é só correr pro abraço. Na manha do gato.
― Como te dói saber que dependeu de mim durante tanto tempo, né moleque? Você ainda vai ter uma pilha de grana, mas nada poderá apaziguar esse bicho que carrega aí dentro.
― Aí, até é bom você e a mongolóide saltarem fora, vocês não pertencem mesmo, têm cabeça de pobre. E pobre é igual a lombriga, quando sai da merda, morre.
― Olha como fala, seu... !
― Acha que não sou capaz de te dar uns tapas por causa da Maria da Penha?
― Que é que você quis dizer com traição em dobro? ― minha mãe parecia voltar de um transe, o olhar distante gradualmente se focando.
― Ainda não se ligou, não? Bem debaixo das nossas barbas, quem me cantou a pedra foi o P2 que mandei seguir essa daí. As duas já até andaram de mão dada em Mongaguá, se pegam dentro do carro. Não botei uma fé quando ouvi.
― Tá dizendo... quer dizer que a Raquel, a Dila...?
― Estou te dizendo que a sua querida Edilamar é uma porra de um Woody Allen, criou pra comer.
― O mesmo fez você.


sábado, 14 de junho de 2014

como conheci minha irmã (4)




            Nem duas semanas se passaram, e Dila convocou uma reunião familiar. Assunto sério. O zum-zum-zum que rolava é que as minhas mães iam se separar. Dezessete anos juntas. Os bate-bocas, as DRs e arranca-rabos já tinham passado, agora era encarar os fatos, e vida que segue. Mamãe estava que era só o pó, as olheiras quase lhe chegavam ao queixo depois dos meses de insônia curtidos na crise terminal. Dava uma dó danada vê-la naquele estado, mas o momento era pra falar de business. Nessas horas, não tem pra ninguém, nunca me deixo pegar de calça curta.
            ― Resolvemos chamar pra esta reunião vocês, filhos, pra dizer que... ― mamãe não segurou mais e abriu o chafariz. Passei o braço sobre os ombros dela.
            ― Tem nada não, mãe, eu já tinha me ligado. Você vai ficar bem, não faz assim... a família continua, nós tamo junto. Fala aí, Raquel, o que acha, você já sabia que elas...?
            Fez que sim com a cabeça.
            ― Acho que já podemos abrir este assunto, mesmo com o sofrimento que ainda causa, porque a decisão mais dura já foi tomada ― neste ponto, Dila foi interrompida por um longo soluço de mamãe. Sentada à direita dela, confortava-a com afagos furtivos no braço e emprestando-lhe o lenço.
            ― Você já tem onde ficar? ― decidi espicaçar logo de uma vez o carcará, quanto mais rápido decidíssemos a parada, melhor pra minha mãe. Técnica do esparadrapo: arranca numa puxada só.
            ― Precisa dar um tapa na casa da praia, coisa de um mês, dois no máximo. Minha aposentadoria já saiu, aí é só mudar ― Dila fazia o número da diplomata, cozinhava o galo em banho-maria.
            ― Ah, isso vocês já decidiram as duas? Estão só nos comunicando? ― meu olhar ia da minha mãe pra Dila, e de volta. Do outro lado da roda de assentos que se formou na sala, a minha irmã.
            ― Filho, eu e a Edilamar achamos que é melhor desse jeito, fica bom pra todo mundo.
            ― Pois pra mim não tá nada bom desse jeito! A casa de Mongaguá é tão sua quanto esta aqui, mãe, vai dar de mão beijada pra quem tá indo embora?
            ― Ei, ei, calma aí rapaz, você esquece quem manteve esta casa e tudo que a sua mãe tem nestes anos todos? Só porque agora você é o tal dos negócios, não pode apagar o passado meu filho.
            ― Minha mãe é esta daqui! Você deu a bota nela, saiu fora, não foi? Então, cada um cada qual, você segue a sua vida, nós seguimos a nossa, mas não vem querendo levar o que não é seu Dila ― voltei-me pro lado da minha irmã, estava lá sentadinha, quieta, muito direita na cadeira como se isso fosse a coisa mais importante do mundo ― Não vai abrir o bico, hem, ô mosca-morta?!
            Remexeu-se um pouco, passeou o olhar ausente em volta. Por um segundo deu a impressão de que ia dizer alguma coisa. Mas não.
            ― Pra você, tudo é muito simples, se é pra defender seus interesses, você vai pra cima de quem for. A lei me dá direitos pelos anos que estamos juntas, e moralmente sua mãe reconhece, pus pão e leite nesta casa sozinha muitos anos... ― Dila começava a abaixar a máscara. Prefiro.
            

sexta-feira, 6 de junho de 2014

como conheci minha irmã (3)



Talvez esteja pensando que eu sou algum tipo de joão-bobo, que vou balangar pra cá e pra lá, chiar, bufar, e terminar me acomodando à nova situação com um sorriso de palhaço plástico. Tá muito enganada, nega, conosco ninguém fodosco. Essa biscate esquece que uma coisa é tretar com um mané qualquer da quebrada, outra é mexer com quem tem subordinados na folha de pagamento, gente às suas ordens. Expressamente pra situações como esta é que mantenho um colega de escola trabalhando pra mim: o Pink, o imbecil do Felício.
            Vidinha lazarenta teve o velho parça de baladas e putedos. Como esperado, tornou-se o loser que já apontava na adolescência, mas, de quebra, a marvada vida ainda lhe reservou um surto esquizofrênico e mais duas internações psiquiátricas. Da turma das antigas, só eu lhe estendi a mão; dou registro em carteira mesmo ele faltando ao serviço vez por outra. Quando passa uns períodos sem tomar as bombas que diminuem as vozes na cabeça, e junto volta a mamar umas canjibrinas, o bicho despiroca e sai pelado nas ruas do bairro gritando que chegou a vez da Sociedade Alternativa.
            Um desocupado na função de faz-tudo nessas horas é uma mão na roda, botei o Felício na cola da Raquel. Alguma explicação devia haver para uma mudança tão repentina de atitude. Loucos e mendigos são ótimos pra ficar pasmando nos lugares, de campana, porque em geral é isso mesmo que fazem o tempo todo ― nada. Ninguém passa recibo.
            Inocente fui eu de não acreditar no relatório dele.
            ― Porra Pink, não faz sentido nenhum esse bagulho que tu tá dizendo, velho. Parou de novo com as pílula controlada?
            ― Seguinte, mano, não somei nem subtraí, quem não gosta de jiló, come pequi.
            ― Caqui o quê, fio, pequi de cu é rola! Quer dizer que a mocoronga...? Não, não pode ser, tu confundiu as bola...
            ― Aí, mano, sou só doze e meio, sou treze não. O que eu vi, eu vi!
            ― Pff, doze e meio! Puta merda, isso que dá ficar batendo palma pra louco dançar.
            ― Todo louco é um, a loucura é o país de um deus solitário.
            ― Bom, de qualquer maneira continua zoiando. Ainda não estou convencido. Você foi até o local e constatou?
            ― Sim, Mongaguá.
            Nem duas semanas se passaram, e Dila convocou uma reunião familiar. Assunto sério. O zum-zum-zum que rolava é que as minhas mães iam se separar. Dezessete anos juntas. Os bate-bocas, as D.Rs. e arranca-rabos já tinham passado, agora era encarar os fatos, e vida que segue. Mamãe estava que era só o pó, as olheiras quase lhe chegavam ao queixo depois dos meses de insônia em que a crise viera se arrastando. Dava uma dó danada vê-la naquele estado, mas o momento era pra falar de business. Nessas horas, não tem pra ninguém, nunca me deixo pegar de calça curta.
           

            

domingo, 1 de junho de 2014

como conheci minha irmã (2)



Se a minha família não fosse meio detraqué, as coisas jamais teriam sido o mamão com açúcar que foram então. Contei a história dela em casa, argumentei mil vezes, enchi os picuás, falei mais que o homem da cobra, e acabou que convenci a todos da necessidade de adotar uma órfã de doze anos criada numa zona de meretrício.
            Estou certo de que, se houvesse homem na casa, nada disso seria possível. É como dizem as minhas mães, “homem é homem”. Isso mesmo: as minhas mães ― fui criado por duas mulheres, a minha mãe e a companheira dela. Durante muito tempo só me conheciam na escola como o Filho das Sapas. Do meu ponto de vista tudo era normalíssimo, desde que me conhecia por gente, havia mamãe e mãe Dila.
            A incorporação da Raquel na família, por outro lado, diminuiu a discriminação sobre nós. Essas histórias envolvendo adoção, órfãs tiradas de puteiro, costumam amolecer o coração do nosso povo tão cordato e tolerante. Algumas vizinhas, as mesmas que antes mudavam de fila no supermercado quando nos viam, agora se aproximavam solícitas, talvez na esperança secreta de que a filha adotiva pintasse a vida das duas mulheres de todas as cores. Principalmente negra.
            Que nada.
            Aquela songa-monga seria o menos indicado dos seres humanos pra infernizar a vida de alguém: silenciosa, refolhuda, engolfada dentro das suas próprias e insondáveis brumas, continuava na mesma toada vagante em que a conheci. Um saco plástico vazio arrastado ao sabor da ventania. Se antes aguentava inerte a rotina brutalizante dos serviços domésticos na zona, transplantada para um lar da classe média baixa, conservava a mesma atitude neutra agora que ia à escola e mãe Dila lhe presenteava vestidos, maquiagem e balangandãs.
            Raquel parecia não tomar nunca posse de nada, talvez com medo de que, como tantas vezes antes, lhe fosse subitamente tirado. A desgraceira suficiente pra sete encarnações lhe ensinara a lição do fogo: desacreditar em definitivos. Vivia conosco como se a título de hóspede permanente, sombra doméstica movente e reconfortante. Nunca a ouvi reclamar do que fosse, nunca um suspiro, um palavrão.
            Depois que “papai” comeu e caiu fora, Dila ocupou o lugar do macho provedor na vida e na casa de mamãe, onde já moravam a minha avó e uma tia idosa. Minha mãe cuidava da casa e das velhas, eu fazia bico de motoboy e estudava. Uns anos após a chegada da minha irmã é que as coisas começaram a mudar. Eu estava no fim do colegial e comecei a entender que não ia conseguir, e também não ia adiantar, fazer faculdade. Trabalho com informática, uma das poucas coisas neste mundo em que o que você precisa pra se desenvolver não está escondido nas universidades, tá por aí, acessível a quem tiver saco de aprender.
            Eu tinha. Tornei-me programador e montei minha empresa de serviços, cresci, abri meu escritório numa parte da cidade em que os traficantes não mandam no bairro e a milícia não chega atirando em pobre. Tinha ultrapassado os vinte anos e enxergava um futuro de conquistas à minha frente. Em primeiro lugar, tiraria a família daquele buraco. Tudo certo, só faltou combinar com os russos.
            Foi nessa época que tive um sonho impressionante. Estou num pavilhão envidraçado com um buraco no meio. O buraco tem quilômetros de profundidade, microfones gravam o ruído que vem do fundo da Terra e o barulho fica reverberando nas paredes transparentes do pavilhão. Pergunto-me se aquele é o som da origem do universo, terrivelmente grave e estranho. Só sentando no chão pra entender. Mas aí já não é o mesmo lugar, é uma clareira no meio da mata fechada, à minha frente vejo uma estrutura de aço, espelhada, um labirinto. Por fora, as paredes refletem a vegetação ao redor, por dentro, texturas imitam raízes, folhas, troncos. O tempo todo ouço um barulho de água. E, bem no centro da coisa, depois de percorrer corredores, alguns sem saída, voltar, entrar de novo, cheguei a uma bomba d'água.
            Grandes mudanças, muitas vezes, são anunciadas por pequenas alterações. A maneira como percebi que havia gato na tuba foi por meio da Raquel: de repente, numa bela tarde de domingo, a cara-de-coió resolveu que não ia dar mais pra mim. Assim, do nada.
            — Quero mais não, isso num tá certo.
            — E quem disse que você dá pitaco? Tá bem louca, tá afim de levar umas piaba sua rameira?
            Dei-lhe uns cascudos, mas não adiantou. Obstinou-se naquilo, não ia abrir as pernas, o cu, a boca, nem nenhum orifício que pudesse satisfazer minha precisão. Durante anos não teve erro, comi a esquilinha sem sustos; na miúda, pra não escandalizar a família, mas sempre que necessitei e quis. Afinal, homem é homem.
            Quando contei sobre ela às minhas mães, escondi o fato de que a obriguei a dar uma metida, paga com a promessa de tirá-la da zona. Com ela em casa, achei que seria um desperdício não continuar aproveitando o silêncio cúmplice da mudinha. E agora, isso. Uma vagabunda que não tinha onde cair morta, cheia de querer ser.
            Baita de uma mal agradecida.