domingo, 30 de outubro de 2016

Cristiania (final)



(24 horas antes)

O elevador esvaziava vagarosamente sua pequena multidão como se fosse a rainha de um cupinzeiro expelindo ovos nas paradas antes de chegar ao décimo quinto, e último, andar. Lojas de produtos eletrônicos, casas de câmbio, detetives particulares, puteiros privê, seguradoras, manicures, comércios de ouro, receptadores de jóias e celulares, assistências técnicas variadas, escritórios contábeis, empresas de representação e de fachada, advogados-porta-de-cadeia, cada uma das boutiques do edifício Cristiania engolia e regurgitava sua quantidade costumeira de fregueses assíduos e freqüentadores eventuais. Iam e voltavam, a carga humana subindo e descendo continuamente. Entre os passageiros daquela manhã uma mulher chamou a sua atenção, ela postou-se no canto de trás à sua esquerda, o mais oblíquo em relação a ele que ficava de frente para a entrada, alinhado ao mostrador onde operava os botões e manivelas do ascensor. Vestia-se como as garotas de muitos anos atrás, embora não escondesse ter vivido cada década desde então, um jeito mimoso envolto na atmosfera nevoenta de tempos mais inocentes. Ela não havia indicado o andar, e não se incomodava com nenhuma das paradas da geringonça barulhenta e brusca. Parecia vaidosa, bem maquiada e cuidada em cada detalhe; uma ponta de cabelo, a insinuar um cacho, saía propositalmente de um chapéu preto enfiado na cabeça. Do sapatinho de tira sobressaía a delicadeza dos pés miúdos, os braços escorriam ao longo do torso segurando uma carteira com fecho de pressão, o sorriso manso fazia pensar numa certa satisfação consigo mesma, apesar do enigmático mutismo que a impedia de declinar aonde ia.
― A senhora não vai descer? Já chegamos ao último andar, daqui pra diante só tem voltar ― não havia passageiros para entrar, nem chamadas de outros andares. O silêncio cortado apenas pelo burburinho da rua.
― De todo esse mundão de gente dessa cidade, achei que você seria o último que não ia me conhecer...
― E eu lhe conheço de onde, pode me dizer?
― Melhor ainda era perguntar: eu lhe conheço de quando?
― Bom, se é assim, então, de quando eu conheço a senhora?
― Preferia que não me chamasse de senhora, aumenta a idade, e as mulheres não gostam de nada que lhes aumente a idade. Nem que sejam palavras.
― Ainda assim, continuo sem entender onde quer chegar com essa parolagem...
― Já cheguei onde queria, acredite, não foi fácil encontrar você depois de tanto tempo. Não tinha muitas indicações, e também as pessoas não são de falar com quem não conhecem por estas bandas.
― É que num lugar deste tamanho ninguém conhece ninguém, aqui só o cachorro não esquece do dono.
― Será que eu mudei tanto assim? Enfeiei, arruinei demais, foi? ― tirou o chapeuzinho preto da cabeça timidamente, como se se desnudasse diante dele.
― Meu Padim Ciço! Será? Cris, é tu mesmo?
― Eu mesma, em carne, osso e medo. Já tava ficando arrependida de ter vindo e... bem, na verdade nem sei bem por que vim, só sabia que precisava lhe encontrar, lhe falar. É como se esses anos todos tivesse ficado uma conta aberta, uma ferida sem casca.
― Ferida, né? É, feridas ficaram muitas, sim. Espero que não tenha se abalado lá das lonjuras do norte só por causa de...
― Eu vim só por causa de nós dois ― pausou o tempo necessário para se certificar do desconcerto dele ―, chega uma hora que a gente começa a pensar que é melhor acertar todos os ponteiros. Não vai ter outra vida, acho que envelhecer é isso: descobrir que acabou o depois.
― Perdeu seu tempo. Não vejo como acertar nada agora... nem depois. Veio só?
― Sim.
― Nem sei por que perguntei, não muda nada. Nada mesmo.
― Você tá certo, não há nada pra mudar. Mas talvez inda haja o que acertar, afinal, você sumiu no mundo. Nunca mais soube do seu paradeiro.
― E pra quê saberia? Você fez a sua escolha, casou com o comerciante rico, que ainda por cima era meu primo. Teve uma vida fácil naquele cafundó onde era difícil pra todos, pegou o bilhete premiado. Quer mais o quê? Veio aqui pra olhar na minha cara e poder dizer: nossa, acertei mesmo, podia estar casada com esse zé-ninguém de ascensorista!
― As coisas que esse homem... meu Deus... Sabe muito bem que não foi desse jeito que falou: havia aquela menina que tu embarrigou, tu me disse na época que ia assumir a criança.
― Ia assumir a criança, mas não ia casar com ela! Daí a senhora catou o cara bem de vida, o que me sobrava? Aquela menina hoje é a minha esposa, a gente tem três filhos, pra seu governo.
― Veja como são as coisas: não tive filhos, Deus não quis assim. Ninguém recebe só as graças desta vida, da miséria todos têm seu quinhão.
― Quer que eu chore?
― Já chorei muito, demais até. Meu marido morreu o ano passado, fiquei esse tempo guardando luto. Então, enquanto pensava no que fazer comigo mesma, resolvi te procurar. Você fugiu de mim, achei que era...
― Nunca consegui fugir de você, não lá dentro, onde as coisas acontecem de verdade. Pode ver o lugar onde trabalho, Cristiane: edifício Cristiania, não é gozado? Bruta piada. Todos esses anos, eu, enterrado no serviço, subindo e descendo sem sair do lugar. Todo esse tempo eu estava colado nesse nome, nesse trabalho de merda, nessa vida de merda. Tá satisfeita de ver o estrago que causou?
― Ninguém sabe o que é viver de fato, o que as pessoas fazem é fugir, mas nunca conseguimos fugir realmente. Eu vim te dizer que sempre pensei em você, sempre imaginei que tudo poderia ter sido diferente. Mas agora, te vendo, entendi que não há alternativa, uma outra vida só ia me trazer outros sofrimentos. A gente não ia ser feliz juntos.
O elevador desceu, chamado pelo térreo por uma nova leva de visitantes. Ela saiu do prédio apressada e sem se despedir, ele ainda não sabia que nunca mais a veria.



quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Cristiania (2)



            Pensou em como seria bom mudar pro centro da cidade. E então um intenso cansaço lhe desceu pelos órgãos do corpo e da alma, talvez não soubesse viver junto aos prédios descascados, andar por ruas onde o descaso varreu a mentira das cores, sentir no fim de tarde raiva ou desejo sexual misturados à buzina dos carros e aos gritos dos loucos e dos camelôs, passar fome e náusea com os churrasquinhos gregos, olhar as sacadas com varais improvisados, assistir aos truques dos saltimbancos nas esquinas, ouvir os autofalantes das liquidações, espiar através de janelas sem cortinas a beleza de corpos nus, o desterro de corpos vestidos. E depois ainda relembrar tudo isso diante do café coado e do pão com manteiga na chapa.
            Quase sem se dar conta, estava em frente à Pinacoteca. Folheou a carteira e constatou que não tinha dinheiro para a entrada, mesmo assim, seguiu a fila de pessoas e entrou no museu também quase sem se dar conta. Era o tipo de lugar onde habitualmente nunca punha os pés, mas aquele já não era um dia habitual sob nenhum aspecto. Surpreendeu-o a leveza e a monumentalidade do interior, o chão alternava cerâmicas delicadas nas áreas externas e parquet em madeira de lei nas salas, passarelas e corredores suspensos aproveitavam a iluminação natural, reforçando a sensação geral de arejamento da construção.
            Havia uma grande retrospectiva de um pintor do qual nunca ouvira falar. Os quadros da exposição eram grandes, todos muito semelhantes, recobriam as paredes de uma série de salas contíguas com pinturas a óleo como se repetissem uma ambição única ao infinito. Estava ali, bem na frente do seu nariz, a prova provada de uma outra temporalidade, uma duração que ia e voltava sem antes nem depois definidos. Sempre havia uma pessoa, nua, e quase mais nada ao redor, em geral um quarto vazio, uma poltrona, um canto de janela, ou corredor. Essas pessoas não eram belas, nem tinham corpos bonitos e malhados como na televisão e nos outdoors, corpos de pessoas ordinárias como ele, mas ostentando um desassombro incomum ― eles apenas estavam lá, por inteiro, mais à vontade do que ele jamais estivera em toda a sua vida.
            Sentiu vontade de tocar as telas, tinha a sensação de que estavam quentes.
            Constatou que os títulos das obras não surpreendiam nunca, regra geral simplesmente descreviam a cena representada: Homem, Mulher sentada, Mão sobre o peito, Mãos pousadas sobre o colo, etc.. O mais inquietante, porém, é que no centro da sala, expostas em vitrines envidraçadas, havia fotos do ateliê do artista com os modelos correspondentes aos quadros da parede. Como tantos, ele pensava que esses retratos seguiam regras pré-estabelecidas: o pintor e suas tintas atrás do cavalete, os modelos na sua pose. No entanto as fotos mostravam algo diferente, nelas, retratista e retratado davam a impressão de esperar, cada um do seu lado parecia aguardar alguma coisa que não estava no quadro. Como se ambos, artista e modelo, tivessem todo o tempo do mundo até se depositar no fundo de um grande vaso de vidro.
            Quase sem se dar conta, já não estava mais na Pinacoteca, mas sentado num banco do parque da Luz. Ao seu lado encontrava-se a modelo de um dos quadros da exposição, uma mulher pequena, de feições angulosas, com orelhas pequenas de criança e sorriso muito alvo ― a nudez dela, escandalosa à plena luz do dia, não parecia ser o efeito da ausência de roupas, antes uma espécie de condição original, anterior a qualquer sentimento de vergonha. Então a modelo se transformou na imagem da sua falecida mãe, ele chorava sem freios, encharcando a camisa branca que vestia. No momento seguinte a mãe levantou vôo, se encarapitou no alto de um abacateiro, e pôs-se a assobiar uma música antiga que ela lhe cantava para ninar.

            Saudade é canto magoado
            no coração de quem sente,
            é como a voz do passado
            ecoando no presente...

            Não, nada daquilo estava acontecendo de verdade, as transformações de mulher em pássaro, a sua mãe, nada era real. Devia estar sonhando em algum outro lugar que não ali, em algum outro dia que não aquele. Imediatamente a mulher-modelo do retrato desceu da árvore e retomou a forma humana, falando-lhe como se tivesse ouvido seus pensamentos. E só então ele a reconheceu: justo ela, a mulher que fizera tanta força para esquecer nesses anos todos. Reconheceu enfim mais uma das artimanhas do destino, mudando a memória na mesma medida em que mudamos no tempo. Nada está parado.
            ― Por que você tá querendo ir embora?
― Porque isto é um sonho ruim, porque eu não quero mais chorar.
― Acontece que se você acordar agora, nunca vai saber se estava sonhando que sabia que estava sonhando.
― Não preciso disso pra saber que você é falsa.
Tudo parecia com mais um dia normal de serviço: acordar, tomar café, pegar o lotação na Cidade Ademar, depois o trem em Jurubatuba, 2 conexões de metrô, descer na estação São Bento, andar 3 quadras a pé, entrar no edifício Cristiania, trocar de roupa no almoxarifado, e assumir seu posto de trabalho.



sábado, 22 de outubro de 2016

Cristiania (1)



            Enquanto caminha pelos corredores atafulhados de gente da estação Sé na interligação trem-metrô ― um caminho que mal escolhe, apenas se deixa levar pelo fluxo ―, tem a súbita sensação de que nada daquilo faz o menor sentido. Tudo parecia com mais um dia normal de serviço: acordar, tomar café, pegar o lotação na Cidade Ademar, depois o trem em Jurubatuba, 2 conexões de metrô, descer na estação São Bento, andar 3 quadras a pé, entrar no edifício Cristiania, trocar de roupa no almoxarifado, e assumir seu posto de trabalho. De repente, no meio da rua Varnhagen, não conseguiu seguir em frente. Em vez disso, parou numa lanchonete e pediu emprestada uma caneta e sacou papel do porta-guardanapos.
            Muitas vezes essa idéia havia aflorado seus pensamentos, mas nunca com tamanha limpidez e urgência. Experimentou diversas versões rascunhadas até escolher a mensagem mais simples para explicar a sua decisão daquela manhã. Afixou o papel no quadro de avisos ao lado do elevador e deixou o emprego de ascensorista que ocupou por tantos anos sem atrasos nem licenças médicas. Seus colegas mal podiam acreditar no recado breve com o qual se despedia definitivamente: “Não posso continuar no mesmo lugar. Deixei o uniforme dentro do armário. Tá destrancado. Adeus.” E assinava.
            Andou pelas ruas do centro velho sem rumo durante horas, cada esquina, cada fachada, as lojas, bancos, até mesmo os vendedores ambulantes, lhe apareciam de uma forma nova, transformada pela quebra repentina do hábito. Como fora possível não ter reparado nas pequenas maravilhas decrépitas que o cercavam diariamente sem pedir afago ou atenção? Por que nunca se dera ao trabalho de assistir a uma missa cantada no mosteiro? Ou mesmo uma parada breve no Largo do Café? Concluiu algo mortificado que andara por aquelas ruas estreitas e sem carros de olhos baixos, deixara de reparar nos becos de geometria irregular, no pavimento enigmático, distraído de alguma verdade agora revelada, fulgurante e sem álibis.
            Era como se todas as coisas falassem com ele. O toque do celular arrancou-o daquele devaneio que, entretanto, tinha muito de um despertar.
            ― Fala Josias.
― Rapaz, que bicho te mordeu? Endoidou de vez, foi?
― Nada, não. Só cansei da porra toda.
― Ah, cansou da porra toda?! Esqueceu que tu tá quase pra aposentar? Deixa de besteira e vem pra cá.
― Vou não. Tô de saco cheio, isso não é vida.
― Que foi que te deu, homem de Deus? Vem já que eu peguei teu lugar, e dei uma desculpa pro encarregado. Arranquei o bilhete maluco que tu deixou lá, só uns dois ou três...
― Dá mais não, Josias. Sabe quando você tá dormindo no meio da noite, e de repente a geladeira pára de fazer barulho? Então, é como isso: nessa hora o que te desperta não é o barulho, mas o silêncio que fica.
― ...
― Você tá me ouvindo?
― Virgem Santíssima, o homem endoidou foi de pedra mesmo! Moço, tu deu pra beber logo de manhazinha, é?
― Bebi nada, não. Tô mais são que nunca. Escuta, você podia me fazer um último favor?
― Último favor? Homem, não me diga que vai...
― Assossegue que não vou fazer bobagem nenhuma. Sabe aquele chapeuzinho que caiu da fachada?
― Chapeuzinho?Barulho de geladeira? Você não tem mais idade pra fumar erva danada, meu irmão.
― Então, é o chapeuzinho do “A”, do primeiro “A”. O verdadeiro nome do edifício é Cristiânia, o chapéu caiu faz um tempo e nunca consegui botar de novo. Você faria isso pra mim?


quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Afterlights (final)




― Acho que aqui está tudo que precisa saber sobre mim. Mas talvez você ainda tenha de me explicar como é que isso vai funcionar.
― Ah é? Pensei que o pessoal da empresa já tivesse lhe contado os detalhes do procedimento. Na verdade essa não é a minha função no... bem, no processo. Mas, ok, vamos lá...
― Entenda, eu não estava muito com a cabeça no lugar quando contratei a Afterlights, acho que ninguém está numa hora dessas. Tudo que consigo me lembrar da conversa com o pessoal do suporte é que não ia sentir dor. Depois disso, recebi a papelada que me enviaram e assinei tudo reconhecido em cartório.
― Veja, ainda dá tempo de desistir. Pra falar a verdade, desistências têm sido bastante comuns na minha experiência com este negócio.
― Não vou desistir. Apenas quero entender um pouco mais, um sentimento bastante humano, não? Quando vieram buscar Sócrates para tomar o veneno que o mataria, encontraram-no aprendendo uma música na sua flauta. Os discípulos lhe perguntaram por que se ocupava disso em seus derradeiros momentos, e ele respondeu: porque assim terei aprendido uma coisa nova.
― Muito justo. Imagino que não se fazem mais sábios como antigamente. É bastante simples: primeiro, tem este aparelho que parece um secador de cabelos de salão de cabeleireiro antigo, ele faz um scanning completo do seu cérebro. Fica tudo salvo neste HD externo. Daí, nós passamos para a segunda fase, eu ligo este equipo de soro que injeta separadamente tionembutal, pancurônio e cloreto de potássio, e, em menos de vinte minutos, estará tudo terminado. A primeira droga anestesia e põe pra dormir, a segunda, relaxa seus músculos e pára a respiração, a terceira substância trava seu coração na hora em que ele se contrai. Raramente falha, e nesses casos, ainda assim, a empresa oferece um shot de morfina em doses cavalares para garantir. Limpo, indolor, e 100 % garantido.
― Tá certo, mas essa é a parte operacional da brincadeira, o que eu gostaria de entender é a parte negocial.
― Negocial?
― Ora, meu caro, trata-se de uma empresa, não é mesmo?, e no fim do dia as empresas têm de realizar lucro. Se estão pagando, a mim e a você, por isto, essa parafernália tem que ser lucrativa em algum ponto. No meu caso, a grana servirá pra pagar o enterro.
― Até onde consegui entender, senhor Ogawa, a parte importante é transferida para o HD. As suas memórias, é isso o que eles querem.
― Se fosse assim como diz, bastaria que viessem aqui fotografar este salão. Ao menos no meu caso, seria bastante fácil, além de economizar pessoal e aparelhagem. Não vejo como escarafunchar as lembranças de um velho solitário, esquisito e pobre possa se transformar em dinheiro. As crianças e os suicidas falam uma língua antiga, eu os outros já esqueceram. Quem decodifica?
― Bom, essa parte fica a cargo da equipe técnica, um bando de geeks que passa o dia vasculhando as informações coletadas. Hoje em dia, o que as empresas mais precisam é de informação sobre os consumidores.
― Informação? Olhe em volta, o que você enxerga? Acha mesmo que aqui se pode encontrar o perfil de algum ávido consumidor de bugigangas?
― Outra coisa que o patrão me contou é que qualquer pessoa, por mais inútil que pareça, em algum momento da vida, teve uma boa idéia.
― Essa é a melhor de todas, uma idéia que preste! Nunca imaginei que se pudesse vender idéias, que eu saiba, o que de verdade interessa são projetos ― ele tirou a boina, descobrindo as orelhas ínfimas ―, ou seja, a maneira de transformar sonhos em realidade.
― É que vivemos uma espécie de apagão de idéias razoáveis, e os especialistas não têm ajudado muito para o progresso geral dos povos...
Instalei o soro na veia tão logo o scaneamento terminou, ele adormeceu rapidamente. O celular tocou, era da Afterlights, queriam saber se tudo corria bem.
― Tá tudo certo, o pulso já parou. Er... posso levar uma lembrança daqui?
― Lembrança?
― É. Eu gostaria de ficar com as orelhas dele ― o cara desligou com um palavrão.
Pela janela, vi um passarinho cruzar o céu alto. Tirei meu relógio do pulso e depositei-o sobre uma tábua de passar roupa. As recordações continuavam todas quietas ao nosso redor.


sábado, 1 de outubro de 2016

Afterlights (3)




A sala que ele chamou de acervo era uma antiga lavanderia adaptada na extremidade oeste do porão, que, na verdade, consistia no piso térreo da casa. No instante em que a porta se abriu, senti o cheiro de tecido mofado, ou de plantas murchas, enfim, o cheiro que as coisas exalam quando apodrecem. Era um espaço amplo, mas sujo e muito bagunçado. Objetos os mais diversos (talvez as peças da coleção?) estavam espalhados aqui e ali, sobre armários bambos e sem porta, largados nas cômodas e mesas, dispostos desordenadamente. Nada parecia estar no lugar certo.
Mas o que estava me incomodando não era a situação caótica da sala, era outra coisa. Demorei algum tempo para compreender o quê.
Andamos até o centro da sala. Era preciso prestar atenção a cada passo para não esbarrar em nada. Eu não queria nem imaginar como o sisudo senhor Ogawa esbravejaria se por acaso derrubasse ou quebrasse alguma coisa. O chão tinha o design moderno de muitos anos atrás, com ladrilhos hidráulicos em padrão mourisco sobre o cimento queimado. Graças às janelas estreitas no alto das paredes, pelas quais se via o céu e as plantas do jardim, a iluminação era boa, apesar de estarmos ligeiramente abaixo do nível do solo. Havia varais pendurados no teto, ferros de passar e antigas máquinas de torcer roupa caídas pela sala, vestígios do tempo em que ali funcionava uma lavanderia de verdade.
As salas de acervo, de qualquer natureza, costumam ser ambientes de aconchego familiar para mim, sempre gostei de passar o tempo encarando arquivos, fechado nesses claustros absolutamente silenciosos onde os visitantes não podem entrar. Mas aquela era diferente de qualquer sala de acervo que eu conhecesse. Era como se cada objeto se impusesse sem reservas, segundo seus próprios caprichos, criando uma dissonância insuportável. Mesmo em depósitos muito desorganizados sempre paira no ar um senso de solidariedade entre todas as peças reunidas por um mesmo museu. Mas ali não havia nenhum vínculo, nenhuma união, aqueles itens disparatados não tinham consideração suficiente nem para voltar o olhar para seus companheiros.
Isso me deixava aflito.
Um carretel, um dente de ouro, luvas, um pincel, botas de alpinismo, um batedor de ovos, gesso ortopédico, novelos de lã, um berço... Experimentei olhar com cuidado para cada uma das coisas próximas a mim, mas não adiantou. Só fiquei mais desorientado.
― São recordações dos conhecidos ― disse ele ―, dos meus conhecidos, uma peça de cada pessoa ou bicho de estimação que passou pela minha vida. Foi a maneira que encontrei de não perder, não me separar de ninguém. Como vivi muito, a maioria deles já morreu.
Sua voz ecoou estentórea e clara, apesar do cômodo se encontrar atulhado. Nesse momento finalmente percebi o motivo do meu desconforto. Ogawa-san usava uma boina enterrada quase à altura das sobrancelhas. Por entre o cabelo ralo e branco que ainda lhe restava, espiavam duas orelhas minúsculas, pequenas demais mesmo levando-se em conta a sua baixa estatura. Eram como duas rolhas secas carcomidas presas às laterais da cabeça. Tinham perdido completamente a forma de orelhas, eram apenas cicatrizes ao redor do buraco dos ouvidos.
― Nossa, são muitas... ― comentei hesitante, tentando desviar a atenção das orelhas.
― Comecei a reunir objetos pessoais quando fiz onze anos. Essa coleção tem uma história longa demais pra ser narrada. Mas vai ficar incompleta.
― E por quê?
― Não vou poder guardar nada de você.
À minha volta, naquele porão coberto de pó e teias de aranha, estava o resumo dos encontros e desencontros que era também o resumo da trajetória afetiva daquele homem. No dia em que completou onze anos, seu cachorro Koto morreu, e ele descobriu que também morreria. A insólita coleção testemunhava a aceitação e a revolta de uma criança contra esse fato irremediável de toda matéria que se torna viva. Talvez não tivesse sido fácil carregar muitas daquelas tralhas, principalmente para uma criança, mas, mesmo assim, ele conseguiu fazê-lo por muitas décadas. Contou-me que não lhe interessavam os souvenires banais, mas as coisas que guardassem, da forma mais vívida e fiel possível, a prova de que aqueles corpos realmente existiram. Algo sem o que os anos acumulados ao longo da vida desmoronariam desde a base, algo que pudesse impedir a morte e o tempo de completarem sua sentença.
Vitória e derrota, permanência e perda. Não, não eram lembranças sentimentais, não tinha nada a ver com isso.