domingo, 27 de novembro de 2011

Poranduba (parte 1)


“Catequizar o gentio, mui nobre entre as mais tarefas do vero cristão”, assim pregava o sermonário do Padre Vieira, gigante da inculta e bela língua. E assim obravam o padre Honorato e a irmã Maria, a Caninana; ele, nas escolas cristãs dos Agostinianos Recoletos, ela, irmã franciscana das Missionárias de Maria; um, professor de artes e ofícios, a outra, auxiliadora de doentes.
Ocorre, porém, que Deus não é Tupã e, nas brenhas do Alto Solimões, ‘assucedem’ histórias que não lembrariam ao próprio Sete-Peles. Quem duvidar que visite a igreja de Nossa Senhora de Santa Ana em Óbidos, onde uma ‘timive’ cobra-grande jaz enterrada; a cauda oculta-se nas barrancas do rio e a cabeça bem debaixo do altar, de onde sai uma rachadura no chão que se estende até ao mercado da referida cidade.
Reza a lenda dos tapuios que, no tempo em que os homens privavam com as feras, e, como elas, viviam de caruru e capim, quiseram Sol e Lua se casar; mas a tanto não chegaram, pois acabaria o mundo. As lágrimas negras que verteu Jacy, a esposa que não foi, correram por cima da terra em direção ao mar, dando origem ao nosso Amazonas ― tão justamente chamado Rio-Mar.
Em nossa história, ao contrário, Irmão Sol e Irmã Lua se uniram.
E tudo aconteceu, como tudo por aqui acontece, vizinho ao rio, num casebre de taipa coberto de palha de ubim. Unidos pela lei da natureza, que os fez feliz com pouco em meio ao muito que os cercava; exuberante, a floresta envolvia a palhoça como quem quer abraçar e tem receio: na rama da maniva balançavam curiós, touceiras de mamorana rumorejavam à beira d’água e o tucauã cantava anunciando coisa boa. Mas, devagar com o andor, não nos adiantemos aos fatos.
Houve naqueles tempos uma epidemia de possessão; irmã Maria viu-se deslocada de seu posto em Itacoatiara para São Gabriel da Cachoeira. A enfermaria do posto de saúde, que do chão, às paredes e ao teto era feito de folhas de palmeira, encontrava-se lotada de índias jovens. Vindo das redes grosseiras de tucum trançado, ouviam-se gritos espaçados, repetidos a intervalos regulares: Acauã! Acauã! As três sílabas perfeitamente escandidas: A-cau-ã!
Entre a família dos falcões, o acauã brilha por ser um caçador de cobras, as quais caça em dupla: quando avista sua caça predileta, solta o guincho terrível: A-cau-ã! Logo acorre outro de sua espécie e põem-se a atacar a serpente; esta, contra-ataca os agressores, que se defendem dos botes usando as asas como escudo. Ao fim de longa refrega, a cobra cai exausta e é devorada. Para as índias virgens o grito da ave de rapina é nefasto, bastando ouvi-lo para caírem em estranha letargia entrecortada por pios semelhantes ao do bicho e convulsões.
O mal é sério e contagia: outras mulheres da tribo caem em seqüência, vítimas do misterioso mal transmitido pelo canto da ave. No entanto, não é assim que pensam os religiosos missionários; enxergando em tudo isso a maliciosa sugestão do pajé, em cuja atividade percebem as sementes da devassidão e da idolatria pagã. Alguma razão têm, porque, muitas das vezes, todo o ‘tratamento’ do feiticeiro consiste de cantilenas, fumigação e a velha e boa conjunção carnal.
Padre Honorato e irmã Maria não mediram esforços para combater a superstição na qual se baseava o poder do (para eles) falso sacerdote; moveram céus e terra, ameaçaram os aborígenes com as sete pragas do Egito, mas o que definitivamente decidiu a questão foi o apoio, negociado secretamente pelo cura, dos comerciantes locais. Eles simplesmente chantagearam a indiarada dizendo que ou expulsavam o velho pajé, ou não lhes venderiam mais cachaça.
Tiro certo.
O pajé precisou deixar às pressas a comunidade. Não sem antes lançar um poderoso feitiço nos dois religiosos.
― Padre, o senhor não teme que ele se vingue?...
― Qual, irmã, e eu lá sou homem de ter medo de tangolomangolo, balaco-baco?
― Hum, homem o senhor disse?
― Por favor, pare de me tratar por senhor...

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