quarta-feira, 18 de abril de 2012

Os filhos da cabeleireira (parte 2)


            Alguma coisa parecia pinicar Lucas, mas ele permanecia reticente, como se estivesse com dificuldade para achar as palavras certas. André, que de bobo não tinha nada, pescou no ar.
            ― Desembucha bro, quem tranca muito fica com hemorróida e intestino preso...
― É o lance do bilhete da mãe... como é que uma coisa dessas vai parar na televisão? É muita invasão, não entendo. Neste país não se pode publicar uma mísera biografia sem a sogra, o cachorro e o papagaio assinarem...
― Ih, fio, é o que eu tava te dizendo: nessa hora não há gente, só abutre. Você não tava aqui pra ver a romaria que isto virou, mano, nego me oferecia dinheiro, di-nhei-ro, só matando!, por pedaços da roupa que ela tava usando... naquele dia ― o maxilar de André crispava-se em espasmos furiosos. Tirou de vez a gravata preta.
― De certo modo, era previsível. Funerais revelam mais sobre os vivos do que sobre os mortos. Guardar este tipo de relíquias permite às pessoas se apoderar do ato do suicida, provar que até o mais individual e subjetivo dos atos pode ser transmutado em fato social... uma maneira de reafirmar a perdurabilidade da comunidade dos vivos.
            ― Luquita, não saco nada desse teu quás-quás-quás; intelectualês não é comigo, só te digo uma coisa...
            ― Aquilo que ela escreveu no bilhete não me sai da cabeça: “minha saudade nunca passa”.
            ― Bem, você sabe, sempre soubemos, né?, o Ti era o filhinho querido dela...
            Tiago.
            Finalmente haviam entrado no assunto que ambos sabiam inevitável. Tiago era gêmeo de André; pouco depois de eles nascerem é que o pai sumira. A história oficial rezava que o malaquias só tinha esperado Gildair voltar do hospital para cair no mundo. André não exagerava: Tiago era mesmo o escolhido da mãe, o mais cercado de quindins e agradinhos; aquele que sempre era perdoado e a quem ela, invariavelmente, passava a mão na cabeça. Coincidência ou não, só Tiago cortava o cabelo no salão da mãe.
            ― Nunca consegui entender como é que ela foi capaz de estabelecer uma diferença tão marcada entre duas pessoas idênticas. Coração de mãe é mesmo a boca da escuridão... Hahaha!
            ― Que foi que te deu, maluco, tá rindo de quê?
            ― Lembrei de como você alugava a paciência dela, lembra?, você a chamava de dona ‘Judiaí’... tudo por causa dos dengos dela com o Tiago; deixava ela uma onça. Mas vocês eram os irmãos que nunca se largavam, por outro lado...
            Tiago e André cresceram apavorando o bairro, brigavam na escola, na rua e nas baladas, granjeando a justa fama de valentões do pedaço. Chegados cronologicamente à idade adulta, só havia uma forma de conservarem a aura de malvados sem aderir ao banditismo puro e simples: aderiram então a uma torcida organizada de futebol. Graças à, digamos assim, expertise acumulada, galgaram paulatinamente os postos da hierarquia hooliganesca chegando à diretoria da agremiação. Deste ponto em diante, as brigas em que passaram a se envolver mudaram de patamar ― a escala aumentou, as conseqüências também: as mortes que inevitavelmente sucediam passaram a ser vingadas com sangue novo, num ciclo de vendettas sem fim entre as gangues uniformizadas.
            Tudo acontecera três meses antes.
Os irmãos desciam a avenida Inajar de Souza rumo ao Pacaembu onde se realizaria o maior clássico do futebol paulista, quando o grupo deles foi emboscado pelas torcidas rivais. O conflito se generalizou com as falanges de marmanjos se enfrentando armados de paus, socos-ingleses, pedras, barras de ferro e o que encontrassem pela frente. No meio da confusa escaramuça, surgiram motos de alta cilindrada arremetendo contra a multidão e dirigindo-se para um pequeno punhado de brigões que se haviam refugiado num posto de gasolina fechado; os motoqueiros sacaram armas automáticas e as descarregaram em Tiago e outro rapaz, que ficou paraplégico devido aos ferimentos. Tiago morreria dois dias depois no hospital.
            A conversa morreu de novo. André pegou o coador de papel no armário para passar um café; Lucas resmungou que não conseguiria dormir mais tarde. Você pretende dormir hoje?, respondeu-lhe o irmão secamente. Tomaram o café em silêncio.
            ― Uma merda o meu nome no meio disso tudo... ― Lucas falava mais para si mesmo, enquanto assoprava encostando os lábios na borda da caneca.
            ― O seu nome, caralho, o seu nome?! ― André perdeu a boa, esmurrava a mesa fuzilando o irmão com o olhar ― É com isso que cê tá preocupado? Maninho, deixa eu fazer um desenho pra você entender: nosso irmão foi assassinado, nossa mãe não agüentou o baque e SE MA-TOU! Se matou, imbecil, um foi morto, a outra se matou!
            ― Pra você é fácil falar, não é uma pessoa pública... que carreira você tem? Dirigente de torcida organizada de futebol, é essa a sua profissão, André?
            ― É sim, e daí? Não roubo nem engano ninguém; não sou como meu bróder que vive de extorquir velhotas na Terra Santa. Belo filósofo você, guia turístico de beatas milionetes em Jerusalém!
            ― Ah é?, fui eu que combinei aquela briga que matou nosso irmão? Quem foi que chegou até a ser preso como um dos principais suspeitos da polícia? Você, irmãozinho, você e o Tiago estavam envolvidos nisso até o pescoço, e você, VO-CÊ, é responsável pela morte do seu irmão e da sua mãe!

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