quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O corno do Bife (parte 2)



            ― Ê pá, toca a andar, pá. Daqui pra diante é só sarilho, não viste o que fez o Corujo? Mandou embarcar quase que a empresa toda pro Algarve, aquele é que é fino!, dizem que a camionete Scania que mandou pra Lisboa não tinha nem a primeira prestação paga... E a mulher, então?, levou cosidas à fatiota e à anágua diamantes a não poder mais. Que ficas tu aqui a fazer, criatura? ― coisa rara, o Fábio falava a sério, mais um amigo a avisar inutilmente o Pai; desta vez nem contou a costumeira anedota do conhecido comum cuja mulher metia-se com Luanda inteira, e que o médico lhe havia assegurado tratar-se de uma psicopata: “pois sim, psicopata ou não, pra mim o que ela é, é uma grandessíssima psicoputa!”; riam-se sempre do fecho da anedota, mas nem ele a contou, nem se ouviam muitas risadas ultimamente.
            ― Convença o seu marido a sair o quanto antes, que o que ele tem são ilusões; mexa as quinamas menina, isto vai mas é andar pra trás. Construir um país, pois sim!, tinha a sua graça fazer um país a sério com estes matumbos... não vê como é que eles vivem sem lei nem roque, como os sobas nas cubatas fazem o que querem? As pretas nem usam cuecas, entregam-se a qualquer um, fazem a ginga-ginga às vezes a vários de uma fiada; os filhos depois, está-se a ver, uma zorraria dos infernos... não vai ter como criar os pequerruchos num lugar assim ― Eva, mulher do Fábio, também sente que é hora de partir; aquela vida de almoços na Messe, cervejas na Cuca, jantares no Mandarim e fins de semana a comer santolas e lagostas no Mussulo tinha acabado quando os combates entre os candidatos a libertadores de Angola chegaram às franjas das cidades; o que se via em Luanda era uns poucos soldados portugueses pelas ruas com as fardas desabotoadas, lafranhudos como o Che Guevara, a tresandar a cerveja e liamba.
            Nos primeiros filmes de que o Menino se lembra na vida já havia esta mesma falta de situação, o mesmo deslugar, o exílio secular da família e da raça; sim, porque agora ele tem não só uma cor, mas também uma raça: a raça errada, na hora errada e no país errado ― que agora jura que vai dar certo ―; é isto, vai ser como na história da leoa Elza: passar a vida se adaptando à savana que sempre foi sua, devolver a natureza ao bicho para readquirir alguma humanidade, porque os verbos do homem são desnaturar, desmatar, antinaturar; porque o bicho-homem é uma ausência, e não adianta subir as montanhas de Malanje: ainda quer mais de altura; pode atravessar o deserto de Namibe, e ainda vai lhe faltar solidão; pode contar cada grão de areia que o rio Kuanza lançou à Restinga, continuará impaciente; o animal gente agoniza muitas mortes por sofrer cada despedida, por sentir fome do que não existe, e é por isso que nunca há de estar em casa no mundo, ou fora dele; o Menino já conhece a metrópole (um lugar em preto e branco na sua memória), lá é frio, escuro e come-se o tempo todo, lá não é a sua casa, mas já foi dos Pais; será que vai poder andar por baixo das pontes do Porto, e morar numa rua daquelas do Aniki Bóbó?
            Nem todos fugiam, no entanto, muitos ficavam por cobiça, mangonha, medo de mudar e até falta de onde ir; mas também existia convicção: o Primo ficaria a trabalhar numa rádio revolucionária; os pais dele venderam tudo que tinham no Hucubal, um lugar bravio onde havia gorilas, corsas, panteras e tribos selvagens que caçavam o leão à catana e à flechada; vejo-o sentar-se na nossa sala, passar a mão sobre o naperon bordado que cobre o braço do maple, e anunciar aos incrédulos Pais (a Mãe é prima-irmã dele) a novidade.
            ― Nós não estamos a confundir liberdade com libertinagem... cumprir Abril é descolonizar, democratizar e desenvolver. Há uma grande nação multiétnica a nascer aqui, mas uma de verdade, não o império transcontinental do fascista do Salazar; uma nação que o povo oprimido por cinco séculos de jugo há de erguer com a dignidade da sua luta. Bem sei que achais isto loucura, pode ser, há momentos em que só pela boca dos loucos se ouvem as verdades; as revoluções são esses tempos loucos, perigosos, mas é um privilégio de poucos estar a viver, a realizar, uma revolução de verdade.
            A hora de partir se aproxima, o silêncio aumenta mais, se é que isto é possível; a aletria a sobrar no prato; o Pai a insistir para que a Mãe não lave a louça, afinal, a mulher-a-dias não está de saída da África, ele pede a ela com maus modos que pare de se comportar como se nada estivesse acontecendo; o Pai fica, leva-nos só até ao aeroporto, a Mãe volta para ele assim que nos instalar na metrópole; nada seria igual ao que tinha sido antes, ao que ainda era agora e já estava deixando de ser, sem que ao menos pudéssemos evitar; o Menino tenta ainda, coloca alma sobre as paisagens que aponta, sua memória quer aprisionar os objetos, tocar os cheiros, construir um panteão de máscaras de piedade e terror; mas os instantes fogem, escapam com a força inevitável do rio-tempo, e ensinam ao Menino que a morte é anterior a si mesma e que as crianças são como os profetas: enxergam o óbvio; enfim, embarcávamos para a Catralhamba num vôo noturno da TAP.



(foto: Matthias Offodile)

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