sábado, 2 de março de 2013

A profundidade começa na superfície (IV)




Cena 5

(Noite. Apartamento do casal, Camila e Dara estão sentadas no sofá, Dara mostra seus desenhos caligráficos para a companheira.)

Camila ― Você está chorando!

Dara ― Estou. Aquilo de ontem me perturbou, é cruel demais, até uma criança tem medo, ou raiva, ou sei lá que mais... é muito pra mim, e é muito pra você também, não negue.

Camila ― Não fica assim, vai passar, tudo passa... É isso que mesmo que você disse: é só uma criança, sabe-se lá o que puseram na cabeça do coitadinho. Vai, mostra pra mim o que você andou fazendo, sabe, é incrível como você aprende rápido: dominou a minha língua melhor que eu, e agora, tá aprendendo sozinha o chinês!

Dara ― Os voluzianos amam se comunicar, conversar é uma forma de amor. Veja, é o que eu estou sentindo agora: bei ai, tristeza () e aflição ()... Os ideogramas são conceitos amplos, eles contam uma história por meio de imagens que se combinam e superpõem, criando novas histórias, liberando sentidos inéditos; por exemplo, bei, a tristeza (), é um coração () que se recusa (), olha, não te parece uma pessoa dando as costas a si mesma dentro do seu coração? Já a aflição (), ai, são os gritos e gemidos que saem da boca () daquele que trajou as vestes próprias do luto (); a aflição exprime um luto, a dor de uma perda publicamente manifestada.

Camila ― Puxa, com uma explicação dessas até parece fácil... Às vezes me passa essa piração pela cabeça: e se a gente brigar, e se o nosso amor acabar? Não posso simplesmente te deixar sozinha neste mundo que não é o seu, que não te acolhe direito, sei lá, me sinto um pouco responsável por você aqui...

Dara ― Estou tão sozinha como você na vida, quero dizer que estar viva é um exílio tão louco, solitário e sem sentido pra mim como pra você. Ninguém está a salvo, não enquanto está vivo. Você é mais aceita do que eu? Este mundo é mais sua casa do que minha? Camila, você é uma mulher humana, e eu, uma fêmea voluziana, certo, a minha diferença também se vê na pele; mas, no fundo, valemos tanto ou tão pouco uma como a outra. A cidade, esta cidade, qualquer cidade, é a mesma pra todos? Você pode andar sozinha pelas ruas nos mesmos lugares e nas mesmas horas que os seus amigos homens? Não pode, talvez nunca possa. As mulheres são uma espécie de cidadãs de segunda classe, o eterno segundo sexo; somos menos empoderadas física, social e politicamente. Bom, isso mudou muito nos últimos anos, é o mantra que todos repetem, mas... você, ainda acredita realmente que as pessoas querem viver sem a desigualdade?

Camila ― Vou abrir um vinho pra nós. No que me diz respeito, te digo que é preciso desejar e lutar pelo novo; quero estar à altura do meu desejo, e não ser do tamanho limitado da minha estatura...

(As luzes se apagam de repente, as duas acendem velas em vários pontos da sala. O telefone toca.)

Camila ― Alô, oi, sim, sou eu... ah, meu querido, quanto tempo, mas não, de maneira nenhuma, claro, venha, será o maior prazer... acabamos de abrir um vinho, claro, você sabe o andar, né? Tá bom, vou avisar na portaria...

Dara ― Quem era?...

Camila ― Um amigo meu, ele tá vindo pra cá... ficou preso na chuva e, agora, com o apagão, ligou pra saber se podia esperar o engarrafamento passar aqui com a gente. Você vai se divertir com ele, é meio fora da casinha, mas muito do gente boa.

(A campainha toca, Camila se levanta para abrir a porta.)

Amigo ― Puf, dureza subir essas escadas a pé... Boas! Gentem, vocês estão perdendo o espetáculo: as luzes dos carros viraram a única iluminação pública da cidade, que afunda nas trevas, no dilúvio e no caos; um belíssimo trombo de veículos paralisa a metrópole que não pode parar, das janelas dos prédios às escuras, lanternas e lasers apontam seus fachos inúteis para todos os lados; e, diante do descalabro armado, diante do desenfreado galope dos Cavaleiros do Apocalipse, eu lhes pergunto: onde estão os poderes constituídos?, o que andarão fazendo as autoridades? Ah, que distração, não é possível saber; se não está passando na televisão, não há como saber o que se passa. Ainda bem que me restou o celular para ligar pra vocês e pedir penico...

Camila ― (Aproximando-se da janela) É verdade, olha, um monte de gente nas janelas com essas luzes que você tá falando... isso adianta?

Amigo ― Claro que não, mas as pessoas querem ter a sensação de que estão fazendo alguma coisa. Já nos acostumamos: a sobrevivência urbana é um estado de alerta permanente, melhor dizendo, de desvio; estamos constantemente nos desviando dos defeitos da cidade. Esta é a nossa relação fundamental com o formigueiro humano: desviar, achar rotas de fuga, driblar obstáculos; desviamos o tempo todo de alguma dificuldade que a vida na colméia nos impõe.

Dara ― Mas senta, relaxa um pouco, toma um vinho pra acalmar, afinal, agora você chegou no santuário.

Amiga ― Obrigado. De fato, com todas essas velas acesas, aqui tá parecendo mesmo uma coisa do tipo santuário...

Camila ― Hahaha, você não fala a sério nunca? Ainda bem que estamos em casa, ficaria assustada de enfrentar esse apagão se estivesse longe.

Amigo ― Com medo estaria eu, se tivesse que morar aqui no apartamento do seu vô Martos, Camila!

Camila e Dara ― Como assim?!

Amigo ― Caramba, não sei se é a melhor hora pra falar disso, assim, neste breu danado... Vocês só precisam ir numa reunião de condomínio, que o povo conta tudo... Putz, não me olhem com essa cara, quer dizer que nunca ouviram falar da história dos gatos?

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