sábado, 8 de junho de 2013

O Monstro (parte 1)



            Eu mesma não sei por que comecei mais este curso, mais uma oficina de escrita criativa, mais uma vez no sentada num banco escolar com a cabeça em uma galáxia distante. É sempre a mesma história: começo a milhão, faço todas as tarefas pedidas, e no final sobra o mesmo retrogosto de missão cumprida e inútil. Desta vez o álibi é nenhum, trata-se de um workshop sobre crônicas, um gênero que não pratico, não gosto e não interessa para o projeto em que estou mergulhada: escrever meu primeiro romance.
            Um estranho sortilégio me deixou incapaz de escrever uma linha além do título no arquivo omonstro.doc que jaz intocado na área de trabalho do meu notebook. Pelo menos o professor Asdrúbal é completamente passado das idéias e as aulas são um primor de nonsense e bizarria, o que no fundo ajuda a distrair da minha paralisia imaginativa.
            ― Do que fala o cronista? De zero a tudo, mas, principalmente, sobre o “nada”, a falta de assunto é o terror cotidiano desta igualmente cotidiana escritura. A crônica diária não é para os fracos das teclas e da alma, reza a lenda que um famoso autor só aceitou uma coluna semanal no falecido JB depois de ter escrito cem crônicas. As quais, obviamente, nunca utilizou durante os trinta anos que durou a sua colaboração naquele jornal... O cronista escreve rente à realidade, falando, por assim dizer, ao pé do ouvido do seu público, como os radialistas. E a resposta dos leitores, em tempos de internet, é escutada de imediato, seja na forma de cliques, de comentários, ou de violentas cornetadas, quando não, agressões verbais. Não há tema nobre ou plebeu na crônica: a grande tragédia do momento, a mais desbotada das banalidades, servem tão bem quanto mal (depende sempre do talento) para esta prosa em traje de passeio. Se o poeta é um fingidor, o cronista é um filtrador: separa e junta, personaliza a crítica, radicaliza contemporizando, discrimina e mistura; no seu liquidificador ficcional se debulham a casca dos faits divers e a polpa das grandes questões da humanidade...
            Sei, sei, essas coisas do tipo: onkotô, onkovô, kenkosô... hmm, tio Asdrúbal está atacado hoje, esse “famoso autor” perigas de ser o Sabino. Ele escrevia no Jornal do Brasil? Daqui a pouco vai falar do Rubem Braga. É infalível.
            ― ... um grande cronista é sempre um grande artesão da língua, já o grande autor nem sempre produz o bom cronista. Vamos a um grande entre os grandes: Machadão. Nos romances e contos machadianos sentimos o retinir do bronze da imortalidade, a beleza do que é eterno e definitivo; ao passo que nas crônicas, comparece o homem Machado de Assis, os ignóbeis preconceitos, miopias e limitações do censor de costumes. Vocês sabiam que ele censurava peças de teatro? Vejamos agora o último parágrafo desta crônica de Rubem Braga, do livro Recado de primavera: “Assim pois, contemplando minha vida pregressa nesta bela tarde de verão quando há evanescentes nuvens róseas lá longe sobre o mar de Ipanema, e me sentindo mais ou menos conformado com a minha solidão, lembro-me de que o nome latino desse nobre galináceo e caça fidalga, o macuco, é Tinamus solitarius, e me recordo de ter visto ovos de macuco, e retorno à primeira frase desta pequena composição jornalística chamada crônica, e digo: todos os telefones eram pretos e todas as geladeiras eram brancas, mas os ovos do macuco já eram e ainda são ― azuis. Esverdeados, porém azuis”. Percebam que o conceito-chave desta “pequena composição jornalística”, e da crônica de uma maneira geral, vem a ser justamente a “evanescência”: as nuvens evanescentes da tarde de Ipanema, a transitoriedade da vida, a solidão do autor e do nome latino do macuco, a evanescência dos ovos “esverdeados, porém azuis”. Graça, liberdade e dignidade clássica, o homem é o estilo na escrita do nosso cronista maior.
            Tudo isso é muito belo e muito bom, porém, não me rende uma mísera composição jornalística, nem sequer algumas linhas de prosa satisfatória para o livro que estou, ou deveria estar, escrevendo. Sempre ouvi com uma certa incredulidade os relatos de escritores sobre o famigerado bloqueio criativo, mas nunca pensei que aconteceria comigo. As idéias costumavam brotar como cogumelos depois da chuva, vinham-me durante o banho, na plataforma de embarque do metrô, ou na fila do caixa da padaria onde tomo o café da manhã. Algo tão natural como espirrar ou marcar uma consulta no dentista.
            Despeço-me dos colegas de curso e vou para o estacionamento pegar o carro do Beni, meu namorado. Uma verdadeira mão na roda agora que troquei a Pompéia por Cotia. Depois de dois anos de namoro resolvemos morar juntos, isto é, mudei para a imensa casa dele na Granja Viana. Beni é uma graça de rapaz: grotescamente rico, limpinho, do bem, e... absolutamente incapaz de terminar qualquer uma das suas muitas iniciativas pra tornar o mundo um lugar melhor. Seria o homem ideal se eu não implicasse tanto com o nome dele: Bernardo Felizardo. Que tipo de idiotas faz rima rica com os sufixos do nome e do sobrenome do filho único?
            Brega no úrtimo. Pra sorte deles, os pais já tinham morrido quando o conheci, caso contrário, não deixaria barato uma tosqueira dessas. Enfim, cada cabeça, sua sentença. A bem dizer, não sei onde estava eu com a minha quando desisti da carreira de autora de livros infantis. Tá certo, eram todos muito ruins, mas vendiam e vendem que nem pão quente. Bela troca fui fazer: de escritora de livros de merda, pra escritora de merda nenhuma. Agora estou aqui, empacada, sem vender, nem escrever. As únicas atividades que preenchem meu tempo são esses cursos e ficar zanzando pela cidade sem rumo no carro blindado do Beni.
            Pra não dizer que o meu cérebro não tem produzido nada, vêm ocorrendo dois tipos de fenômenos que se repetem: um devaneio diurno e um pesadelo. O sonho não varia muito: estou no quarto de dormir, na cama de casal que pertenceu aos pais do Beni, suíte que ele insistiu que ocupássemos, embora, a princípio, eu tivesse recusado por achar mórbido demais. Estou sozinha na cama. Ouço um barulho vindo do banheiro, pergunto: “Quem está aí?”, nada, ninguém responde. Sento-me na cama, nua, então vejo, recortada na contraluz, a silhueta do meu namorado saindo do toalete. “Que susto, Beni, por que não me respondeu?”. Ele se aproxima em silêncio, e me esbofeteia violentamente com as costas da mão.
            Durante o dia, a cena que me vem é rigorosamente a mesma, sempre. Estou em pé em meio a uma tempestade, à beira de um precipício. O mar revolto lá em baixo, quebrando violentamente, e eu de braços abertos, cabelos revoltos, pés no chão, coração nas estrelas, a mente conectada a toda aquela selvageria em volta, firme, enfrentando tudo, sem me perder nem me render às forças da natureza. Dizem que o melhor caminho diante de um abismo é dar um passo atrás... Eu ouso permanecer em pé.

            

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