quarta-feira, 21 de agosto de 2013

die Präparatoren (parte 3)



A cabana era feita de grandes toras, sumariamente desbastadas e unidas nas extremidades por encaixes entalhados, sem a utilização de pregos. Tinha dimensões pequenas, resumindo-se a duas peças: o dormitório e a sala de jantar, que também fazia as vezes de cozinha, sala de estar e lareira. Lá fora, via-se um cercadinho para banhos, o abrigo da lenha e a fossa. O cômodo maior, onde conversavam, assentava diretamente no chão; o teto ficava oculto por um forro de ripas de madeira, e as frestas entre os troncos que formava as paredes estavam vedadas com argila, de modo a proporcionar um isolamento total. Uma porta de madeira, duas janelas com meias cortinas de renda, e a abertura no telhado para a chaminé, tais eram os meios de aeração e iluminação natural. O mobiliário escasso compunha-se de alguns bancos rústicos em frente à lareira, a mesa de refeições com quatro cadeiras, um forno a lenha, panelas e talheres, além de dois lampiões a querosene pendurados na parede.
Silberblick estava sentado numa cadeira austríaca de palhinha. O silêncio não se deixava quebrar. Fidencio, sentado de frente para o velho, se pegou pensando em como seria fácil matar aquele homem raquítico apenas com a força das mãos. O serzinho balançava suavemente como se perdido em divagações longínquas, subitamente, esticou para diante o pescoço onde os músculos se destacavam na pele apergaminhada, encarando-o. O gesto pareceu deformar todo o espaço ao redor, criando um túnel diretamente ligado aos pensamentos do interlocutor.
― Como se chamava ela mesmo?
― Ela, quem?
― A moça. A que nos causou aquela encrenca toda em Ycuamandiyú...
― Nadi, Nadi Kaiaguá.
― Uma pena o que aconteceu, uma moça tão nova... Teria, o quê, uns dezesseis anos?...
― Quatorze. Mas o senhor não me chamou aqui pra falarmos do passado, né?
― Entendo. O assunto ainda lhe incomoda... pra nós também envolveu considerável risco, quase arruína nossa atuação, hã, sigilosa. Não é boa política deixar os prazeres prejudicarem os negócios, nem vice versa. Você, afinal, teve os maiores constrangimentos, fugiu do país por uns bons anos, não foi? Cinco anos nos Estados Unidos, uma fase difícil...
― Não posso reclamar. Nossas relações têm sido bastante compensadoras, o senhor sabe, desfruto de uma situação muito acima do que jamais imaginei ― Fidencio se esforçava por desviar a conversa daquele episódio antigo de duas décadas.
― Muito bom, meu caro, satisfação e comércio devem andar de mãos dadas. Assim como a guerra e os negócios. Veja, há tantas maneiras de perder uma guerra quanto de ganhá-la, e, no entanto, nós perdemos ganhando a última delas.
― Não sei se estou seguindo o seu raciocínio...
― Muito simples: o Terceiro Reich perdeu a guerra para os americanos e os russos. E o que eles fizeram? Trataram de impor suas regras econômicas, seu poderio militar e sua cultura ao mundo. Exatamente o que teríamos feito. Perceba a singela grandeza do feito, as nossas doutrinas triunfaram sorrateiramente: a idéia de raça dominante sobreviveu na de nação hegemônica, e as técnicas de propaganda que garantem a dominação das elites e o controle das massas adquiriram uma importância maior do que em qualquer outra época histórica. Estetizamos a vida, Fidencio, vencemos. Só não se pode anunciar isto em alto e bom som.
― Herr Silberblick está dizendo que ganharam a batalha ideológica?...
― Estou dizendo mais: estou dizendo que essa é a única batalha que não se pode perder, o privilégio de atribuir significados. Vivendo aglomerados em grandes números, que outra coisa esperar dos humanos senão micro ou macro fascismos? Olhe à sua volta: você vive semi-absorvido em redes virtuais repartidas em comunidade altamente hierarquizadas. As idéias que defendo se espalharam como vírus, e os vírus não podem ser derrotados porque se infiltram nos DNAs alheios, se replicam, se transmitem adiante, se inscrevem no código, embaralhando as cartas do devir. Nossa Kultur antecipou tudo que temos hoje, ela é a grama no canteiro de flores do Ocidente, foi a primeira a iluminar o lado escuro do humanismo ao aprimorar sua tecnologia social mais primitiva: o controle pelo medo/desejo. Transformamos o mal numa commodity para as multidões.
Desabotoou o casaco, deixando à mostra uma submetralhadora presa ao ombro por uma correia, tirou do bolso interno um objeto. Depositou-o na mesa, era um aparelho de som a pilha. Ligou o aparelho, o chalé foi preenchido por música sinfônica. Saboreou a música por um tempo antes de voltar a falar.
― Bernhard e Elizabeth Förster se decidiram pelo Paraguai há mais de cento e vinte anos, quando fundaram a colônia Nueva Germania. Que honra para o seu país, meu amigo, servir de berço para o Novo Homem! O primeiro experimento eugênico, uma comunidade de quatorze famílias puramente alemãs mudou-se para em San Pedro em fevereiro de 1887. Após a falência do nosso amado patrono, simulamos o seu suicídio e passamos para a clandestinidade, que, no nosso caso, implicou viver abaixo da terra em galerias subterrâneas, longe de um mundo que ainda não estava preparado. Depois de 1945, naturalmente, fomos o destino preferencial de muitos oficiais e dirigentes nazistas... um motivo extra para nos mantermos atuantes, mas fora do radar.
― Então é por isso que o seu povo tem esse aspecto... diferente?
― É. A falta de sol deformou-nos o corpo, porém, não alterou nosso espírito. Me diga, esta música o agrada?
― Sim, é bonita, e parece importante...
― A terceira sinfonia de Mahler. Um judeuzinho impertinente, como ele mesmo disse, três vezes apátrida: natural da Boêmia na Áustria, austríaco na Alemanha, judeu no mundo inteiro. Em toda parte um intruso, em nenhum lugar desejado; não poderia definir melhor esse povo infecto! E por que você acha que estou escutando essa música degenerada que, em diversos momentos, não se prende a tom algum?
― Não faço idéia.
― Simples, caro rapaz, aberrações como esta serviram de arauto para a decadência, o afastamento da disciplina tradicional, o desencadear da besta nas artes e no ser humano. Ouça agora isto... ― o alemão acionou os botões do aparelho de som, mudando para uma música terrível, assustadora e irregular como um tiroteio.
― Hmm, dessa eu não gosto! Parecem instrumentos tocados por macacos.
― Hahaha! Excelente observação. Você está ouvindo o Quarteto para o Fim dos Tempos, uma obra composta no campo de concentração de Görlitz por outro desses quasímodos que tanto se esforçaram por destruir a beleza e a harmonia no mundo. No frio glacial da Silésia, inverno de 1941, milhares de prisioneiros se juntaram aos oficiais e soldados alemães para ouvir quatro virtuoses tocando um piano desafinado, um violoncelo sem uma corda, um violino e uma clarineta. E sabe por que estavam lá meus compatriotas? Porque se tratava de música, porque a música faz ressoar fundo o dionisíaco instinto vital, o espírito trágico da vida!
Fidencio se deu conta de que também ele era um preparador do Apocalipse, também ele ouvia as palavras do anjo como um leão que ruge: “Não haverá mais tempo, mas no dia em que soar a trombeta do sétimo anjo se cumprirá o mistério de Deus”. Também ele era uma avá yvýpe, tinha se tornado um deles.


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