quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Acumulação primitiva das sombras (#3)



            A vida passou de morosa, a difícil como nunca. Pensavam nos outros povoados ao norte mais afortunados, construídos em vales floridos, cheios de árvores frutíferas perfumando o ar, e riachos de águas frias e límpidas. Começaram a se dar conta de que viviam numa planície estreita e cercada de montanhas escarpadas, varrida por um vento quente que lhes soprava poeira nos olhos. Encontrar água virou uma batalha diária, porque os poços, até os mais fundos, quase sempre estavam secos. Havia um rio, mas os aldeões precisavam enfrentar uma caminhada de meio dia para chegar lá, e mesmo assim as águas corriam lamacentas o ano todo. Efeito da feroz estiagem, os canais de irrigação pareciam trilhas pedregosas sem sentido; eles trabalhavam duas vezes mais para conseguir metade do necessário para sobreviver.
            Por que você não compra um carro?
            Porque teria que comprar logo dois.
            Ah, ia esquecendo dessa sua mania duplicadora... É verdade o que dizem?, que há uma réplica de cada objeto em sua casa?
            Na verdade possuo um exemplar repetido de tudo em minha vida: dois cães, duas casas, dois infartes, etc., digo principalmente num sentido mental.
            Acontece que um procedimento assim, sem falar no TOC colecionista, superpovoa a realidade com espelhos, sexualiza o mundo no limite do insuportável.
            Sombras são mais confiáveis que espelhos, pelo menos não se põem a multiplicar, inverter as imagens! São os nossos dublês mais simples, veja, tudo pede seu ersatz: o outro nos sacode do sonho da identidade.
            O verdadeiro nó da questão reside na relação íntima entre dois termos, e não nas conveniências ou inconveniências que cercam toda relação. De toda maneira, recaímos no infinito ao dobrar a aposta: um substituto leva ao outro...
            Ah, sim, claro... os incas já conheciam isto, faziam calculadoras sofisticadas, começa com o zero e o um (sempre a dualidade fundamental), então, é só acrescentar novos elementos à seqüência somando os dois anteriores. Deste modo se constroem as catedrais, crescem as ninhadas de coelhos, as pirâmides, os mercados financeiros, as conchas, a disposição dos galhos na árvore, o arranjo das folhas no coração da alcachofra, ou o desenrolar das samambaias. Um simples deslocar da série, a partir da oscilação entre nada e alguma coisa.
            Bem, quando temos um princípio, passamos a vê-lo em toda parte, não?
            Aí é que está, não inteiramente. Passei anos colecionando os duos à minha volta: as duas igrejas, a estrada que se divide, a dupla vida de homens, bichos e plantas; se encontrava um assassino entre os meus vizinhos, logo aparecia um blasfemo, aos santos correspondiam os orates, e assim por diante. Até que surgiu esse obelisco atormentador... é um abismo à luz do dia, algo capaz de ir de zero a tudo, capaz de roer o oco do coletivo: um acontecimento sem sombra. Você não percebe a monstruosidade do conjunto vazio? A essa caixa que apareceu, não responde nada em lugar nenhum!
            Também não é pra tanto, cara, não entendo como é que um acontecimento tamanhamente besta pode tirar do sério tanta gente boa. Que diferença faz uma coisa que não faz diferença nenhuma?
            Se quiser ficar, fique, te dei a letra, por falta de aviso não foi. Pra mim, deu, vou nessa que é bom à beça.
            Foi o primeiro a se mudar. Posteriormente, em conseqüência de fatos que serão relatados adiante, outros moradores foram abandonando o vilarejo; neste período, inclusive, as pessoas já não se mudavam, simplesmente desapareciam. Ninguém mais ouvia falar delas, era como se tivessem sumido do mapa. Relatos de ousada imaginação falavam de anônimos sendo acordados no meio da noite por milícias, espancados, algemados e conduzidos para centros comerciais. Enfim, naquele contexto, crenças estúpidas achavam guarida em cérebros sadios; qualquer um, mesmo sendo rigoroso, racional e inteligente, podia errar gravemente na avaliação da conjuntura.


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