domingo, 8 de fevereiro de 2015

a polícia das famílias - I



Você está enchendo um copo com água, enche até chegar à borda, continua a encher, agora a água cai sobre a mesa, molha a mesa e cai de novo, daí escorre pelo chão que também fica molhado, você continua a derramar até que toda a casa fica inundada embaixo da água como um aquário.

Então, aquele copo já nem tem mais importância porque as coisas dentro da casa estão flutuando soltas, nada fica no mesmo lugar e ninguém vai se lembrar onde tudo começou. As coisas grandes começam pequenas, as pessoas grandes também, o que não muda é o esquecimento do começo.

Eu tenho um livro de lendas chinesas lindo, cheio de ilustrações coloridas, sempre releio as histórias que mais gosto por isso nunca consigo terminar de ler esse livro embora ele seja o meu preferido. Não entendo muito algumas partes, mas tem uma história que adoro demais: “Querer ir para o Sul com a carruagem que segue para o Norte”.

Os meus pais, os pais dos meus pais, as tias da escola, os adultos todos que eu conheço, parecem o rei que pra ter paz começa uma guerra. O mundo não deveria estar nas mãos da gente grande, eles fazem tudo ao contrário e nada dá certo, ainda assim continuam errando da mesma maneira, nunca explicam nada direito, nem gostam de ouvir respostas óbvias ou diferentes do que esperavam. O imperador da China sim é que era esperto.

Mamãe foi chamada na escola porque as professoras acham estranho eu desenhar a minha casa embaixo da água e bater nos meninos. Falaram pra minha mãe me levar na psicóloga, mas eu sei que ela não vai fazer. Os meninos mais fortes batem e mordem todo mundo, mas quando uma menina responde é porque alguma coisa está errada.

Minha irmãzinha menor tem cinco anos, é uma boba alegre, coitada, macaquinha de imitação em tudo que eu faço, e os outros também ela imita porque só sabe fazer é repetir. Brinca, apanha, chora, e volta a brincar com quem acabou de bater nela. Isso ela não conseguiu aprender comigo: quando alguém me machuca, eu machuco de volta.

As outras crianças não chegam muito perto de mim, uma menina que sobe em árvore, anda sempre com livros e não quer ser princesa... Não ligo muito porque assim me deixam em paz. Vale a pena. Daqui do banco onde estou sentada com o meu livro vejo a minha irmã brincar.

Ela tem uma tala no braço esquerdo, mas isso não atrapalha ela correr pelo gramado com os amigos que conheceu agora na praça. É sempre a mesma história, daqui a pouco vai ter chororô e a babá vai se levantar pra ver o que foi. Quando ela caiu do balanço e quebrou o braço foi aquele berreiro, mas ela já esqueceu.

Isso a pirralha tem que eu não tenho: ela esquece as coisas.

Os pequenos somem entre os ramos do chorão brincando de polícia e ladrão, no fim do dia minha irmã vai ficar cheia de picadas de bichos e vai ter que passar pomada no corpo todo porque ela é muito alérgica. Já faz tempo que eu decidi que vou ser polícia quando crescer.

Só que não vou ser da polícia igual às outras que andam nas ruas de carro ou de moto, vou vigiar dentro das casas porque até hoje ainda não inventaram uma polícia das famílias. Tudo começa em casa.



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