Às vezes as
coisas saem dos trilhos e o mundo parece ter ficado de pernas soltas e pontas
afiadas, e é então que podemos abandonar as vias habituais para experimentar
caminhos novos e desusados porque tudo parece ter se tornado possível. Era
assim que Jaque se sentia naquele primeiro dia quando deixou a casa de Lucía,
de repente aquela moça passou a existir na sua vida, e mais de repente ainda,
tornou-se amiga, aliada, e finalmente cúmplice num esquema mirabolante de caça
a um predadoir sexual. Exatamente aquele que a marcara para sempre.
Tinha tudo pra
dar errado. Mas as coisas foram caminhando rapidamente nas semanas subseqüentes,
a identificação pelo programa de reconhecimento deu positivo, Slobodan Radic
era mesmo o agente especial Kemper Boyd: 96% de certeza. Quem não entendia nada
era Paco, a súbita aproximação entre as suas amantes parecia-lhe uma fulminante
paixão feminina a empurrá-lo prum escanteio desonroso e mortificante. Talvez
ficasse ainda mais alarmado se soubesse que Lucí agora fazia uma corte bastante
descarada ao vizinho do terceiro andar, que por sua vez mostrava-e totalmente
deslumbrado com a deslumbrante morena de sobrancelhas grossas, literalmente
caída do céu.
Nisso no
entanto Paco não se enganava de todo: as duas viviam noites febris de
maquinações assassinas regadas a álcool, confidências descabeladas e pegação
liberada. Como aconteceu depois do primeiro jantar romântico de Lucí com o
falso comerciante sérvio. Assim como se nada, depois de 3 garrafas de Torre de
Oña, ela lhe falou abertamente das suas preferências sexuais:
― Então, meu
amigo, não sei como são essas coisas na sua terra natal, mas aqui costumamos
ser diretas nesse particular. Não é que apenas me sinta atraída por homens mais
velhos, como você reparou bem, mas tenho também outras fantasias menos...
digamos, corriqueiras.
― Ora, ora,
este país ensolarado e quente não cessa de me surpreender. Seria muito pedir
que fosse ainda mais explícita quanto a essas preferências menos... corriqueiras?
― Não me
obrigue a ser vulgar, os homens que deduzem me excitam mais. Vou lhe apresentar
uma grande amiga minha, Jaqueline, se gostar dela, poderíamos passar um fim de
semana numa casa de campo. Só nós três.
― Parece uma
idéia encantadora, um presente do destino nesta minha vida de cigano. Por que
não?
O plano seguia
de vento em popa: as apresentações transcorreram num clima de descontração no
apartamento de Lucí, o gringo estava que não se agüentava em si. Parecia uma
criança ganhando presente de Natal em julho. Nem desconfiou quando Jaque lhe foi
apresentada, afinal, em vinte anos ela não deixara apenas de ser uma menina
para se tornar uma das mais respeitadas engenheiras de segurança da Espanha:
ela também havia mudado de nome. Tinha sido a única maneira de continuar
estudando, seu nome chegou a sair nos jornais da época.
Era uma
justiça histórica, vendeta a ser saboreada na frieza dos pratos longamente
aguardados: a menina abusada pelo monstro com imunidade diplomática seria
resgatada pela mulher bem sucedida e autoconfiante de hoje. E tudo isto pelas
mãos da namorada do ex amante, Lucí, o encontro favorável, a buena dicha lhe
sorrindo como o gato de Alice nas curvas irônicas da vida. Também ela havia
sido molestada por um tio, e enxergava nesta louca aventura em que se metiam
irrevogavelmente a sua revanche contra um abuso tolerado por sua própria
família.
Marcaram o fim
de semana seguinte numa casa de campo em Villamartin, a 20 km de Sevilha. Lucí
trabalhava com imóveis de luxo e conseguiria as chaves de uma propriedade vazia
fora das câmeras de vigilância. O plano era ousado: seqüestrariam o canalha,
drogavam a bebida dele e o matavam com uma overdose de heroína. O corpo elas
jogariam numa represa do Parque Natural de Alcornocales amarrado a coletes de
chumbo. Tomaram a precaução de desligar o GPS do carro e dos celulares. Na noite
anterior à viagem Jaque teve um sonho.
Estava numa
tourada noturna, mas a noite era incrivelmente clara iluminada por uma
brilhante estrela vermelha bem próxima da lua. O animal dispara, um meteoro de
meia tonelada de carne emergindo do touril, ele rodeia toda a arena como uma
ratazana encurralada, bufa, raspa os cascos no chão. Então arremete na direção
de um cavaleiro enterrando seus chifres até o crânio no flanco da égua, que
galopa absurdamente picadeiro afora, escoiceando, deixando escorrer por entre
as pernas uma massa de entranhas de cores abjetas, branco, rosa e cinza-carmim.
A bexiga rebentada do animal agonizante lançava uma poça de urina sobre a areia
― tamanha era a tensão nos músculos das pernas e do baixo ventre, ela gozou.
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