sábado, 23 de abril de 2016

Red Star (final)



Jaqueline acordou primeiro. Quando Lucía começou a se mexer no seu canto, ela já havia se acostumado com a obscuridade do lugar: uma sala de aproximadamente vinte metros quadrados, abafada, toda em concreto, sem luz nem janelas, de um dos cantos subiam degraus de ferro chumbados à parede. No canto oposto à escada, havia uma mesa e duas cadeiras. Alguém algemara as mãos e os pés delas, a corrente das algemas das mãos passavam por trás de um fio de aço que corria na direção do maior comprimento do cômodo e permitia que se movimentassem lateralmente até o banheiro, na verdade, um buraco no chão fazendo as vezes de fossa.
Lucí estava enjoada, Jaque arrastou-a como pôde para o buraco onde a amiga vomitou tudo a que tinha direito. Sentaram-se lado a lado com os braços elevados por causa das algemas suspensas no fio de aço.
― Desculpa.
― Desculpa do quê, Jaque? Você não me obrigou a nada.
― Fui eu que te meti nesta encrenca...
― Nada disso, eu quis participar de tudo. Nós duas queríamos, e nós fizemos tudo juntas.
― Eu devia ter desconfiado, esse homem é um monstro. Esperto demais pra ser pego.
― Sabe de uma coisa?
― O quê?
― Você é a melhor amiga que já tive.
Ouviram o ruído de uma porta abrindo pesadamente acima, depois, o barulho de alguém descendo os degraus de ferro. Boyd apareceu carregando garrafões de água e embrulhos com mantimentos, exibia modos relaxados, embora os olhos azuis parecessem agora quase negros.
― Bom dia señoritas, nada como um café da manhã reforçado pra se recuperar de uma viagem desconfortável. Vocês devem estar com dores musculares porque tive de trazê-las no porta-malas até aqui ― largou os embrulhos sobre a mesa, pôs os vasilhames com água no chão e sentou-se numa das cadeiras.
― Que lugar é este? O que pretende fazer conosco, seu canalha? ― os olhos de Lucí lampejavam como bruscos rasgões no céu enevoado de uma raiva infinita.
― Ora, ora, La Fúria, gosto disso. É tão... espanhol, não é mesmo? Espero satisfazer a contento todas as curiosidades das minhas hóspedes: este é um centro de detenção provisório de terroristas, existem vários destes bunkers secretos espalhados pelo mundo, digamos que aqui se praticam “técnicas ativas de interrogatório”, acreditem, sem isto não haveria mundo livre.
― Um centro de tortura! Bem adequado pra escória que você é ― Jaque acordou inteiramente do efeito do sonífero, mas não sentia que despertava para a vigília, e sim num pesadelo inominável.
― Por outro lado, o que vai acontecer daqui pra frente depende inteiramente de vocês. Vou lhes dar uma alternativa ― puxou umas folhas de papel, que estendeu sobre a mesa.
― Que alternativa você teria pra nós, vai nos enviar pra Guantánamo?
― Quase. Na verdade estes papéis são para a abertura de empresas off shore no Panamá. Tenho comigo os seus cartões de crédito e bancários, preciso das assinaturas e das senhas. Transfiro todo o dinheiro pra fora do país, e vocês vão viver felizes longe do sol da Andaluzia e, de preferência, da Europa. Se voltarem, se fizerem contato com a família ou os amigos, se avisarem a polícia, eu acho vocês e acabo com as duas bem devagarinho.
― Quer dizer que você solta a gente se assinarmos esses papéis?
― Calma, Jaque, depois que tivermos assinado isso daí, com as senhas na mão, ele pega a nossa grana e mata a gente do mesmo jeito. Pensa bem, assim ele teria o álibi perfeito, a polícia nem se preocuparia em investigar: duas mulheres rapam suas economias e somem no mundo juntas pra viver seu louco amor. E o imbecil do Paco seria o primeiro a confirmar a história.
― Tem razão, Lucí, o que diz o senhor licença-para-matar?
― Olhem, se eu estiver mesmo a fim, consigo tirar qualquer coisa de vocês. Posso, por exemplo, começar com Lucía enquanto Jaqueline assiste, depois trocamos algumas vezes e... Hahaha, aposto que não era bem assim o ménage à trois que me propuseram! Obtive confissões de sandinistas, etarras, comandantes do IRA, da Al Qaeda e do DAESH, com duas meninas assustadas?, arranco até aquilo que nunca contaram a vocês mesmas.
― Você é um lixo, Boyd, é isso que nunca poderá deixar de ser: um grande saco de bosta!
― Só me responde uma coisa: por que fez aquilo comigo?
― Jaqueline, não há uma razão, nunca houve, fiz porque podia fazer. Foi aí que erraram infantilmente: não podiam me matar, no fundo vocês só queriam poder ser iguais a mim uma vez na vida. Bom, eu lhes dei uma escolha, dou-lhes mais uma semana pra pensar. Aqui têm comida e água para agüentarem uma semana, enquanto isso estarei numa missão. Nosso próximo encontro será decisivo, garanto.
Efetivamente, Boyd contava voltar em duas semanas, calculava que um certo grau de stress alimentar e hídrico facilitaria as negociações. Mas não podia imaginar que a situação no Iêmen (para onde fora enviado) iria se deteriorar tão rapidamente e por tanto tempo: só conseguiu voltar à Espanha depois de 3 meses. Alugou um carro no aeroporto e dirigiu a duzentos por hora rumo ao bunker onde deixara as duas amigas, perguntava-se se ainda estariam vivas.
A cena era bárbara até pra quem vivia na barbárie, encontrou-as completamente desfiguradas. Uma delas jazia morta num canto, pedaços de pele com cabelos entupiam os ralos, acumulando sangue e dejetos no cubículo, o cheiro era nauseabundo. A que ainda vivia apresentava grandes porções de carne arrancadas, os ossos dos dedos expostos, a barriga aberta num talho irregular deixando à vista os intestinos que escorriam da cavidade abdominal para o solo. No rosto escalavrado e irreconhecível do farrapo humano podia ver-se a brancura carminada dos globos oculares rotacionando expostos.
― Quem é você? Jaque ou Lucí?
― A pergunta é: quem é você, Thomas Kemper Boyd?
― É você Jaqueline? Só me diz isso.
― Não me reconheces? Sou a loucura escondida dentro de ti e de todos os outros, rogando a todo momento pra ser liberada, desde o mais profundo do animal que és, da fera sem descanso que nunca deixarás de ser, sou as pedras chamuscadas das aldeias supliciadas por teus exterminadores, as valas comuns onde jogaste os corpos dos inocentes, sou o silêncio dos torturados, o enigma que se esconde nos teus mais estranhos pesadelos, sou todas as noites que nunca mais dormirás, a estrela vermelha que nunca te abandonará.



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