segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Super K (1)



“Um brinde ao amor e, portanto, ao ódio, Liebe und Haß, como diriam nossos amigos de Manheim”, tentava manter a calma, mas estavam perdendo o paciente.
“Não está respondendo ao betabloqueador, a pressão subiu muito”, de olho nos monitores, a médica assistente fazia os procedimentos de urgência o melhor que podia.
“Está muito taquicárdico, 250 por minuto e não baixa. Você lembra dessa época, Aninha, Manheim?”
“Lembro dessa época com carinho, Candy, nós éramos doutorandos cheios de energia e sonhos, e, se bem me lembro, você ainda não tinha se transformado nessa pessoa tão cheia de si, tão... Você não percebe o que está acontecendo? Ele está indo, como os outros.”
“Ora, poupe-me do sermão, você sabe o quanto é comum que duas noções suficientemente díspares ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida, várias combinações são possíveis. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais preocupante, nascimento e morte.”
“Entrou em fibrilação, me ajuda com o cardioversor e deixa de falar besteira.”
“Voltou. Mas ainda temos más notícias: a gasometria indica uma acidose metabólica, o rim dele parou”, ele limpou o suor da testa com as costas da mão num gesto desanimado.
“Iniciamos xilocaína e amiodarona?”
“Melhor não, custos desnecessários. Daqui em diante nossos esforços não poderiam ser mais irrelevantes, já vimos essa reação. Os mortos não respondem a mais ninguém, a mais nada. Assim que isto estiver terminado, podemos tentar escrever um artigo. O mundo clama por novos empiristas.”
“Não sei se tenho a sua, hã, disposição para o trabalho especulativo, você sabe muito bem que sou a devoradora de dados, a rainha das meta-análises. Empiristas, você disse? Nós sacrificamos tudo no altar das evidências disponíveis, e as evidências sugerem fortemente que esta droga não é segura. Não. Definitivamente não possuo essa sua veia poética e, por que não dizer, midiática.”
“Bom, bom, no ponto em que estamos ainda não é chegada a hora da exposição pública, mas acredito que estamos muito perto de algo grande. Não acha?”
“Quer saber mesmo o que eu acho? Acho que estamos brincando com fogo, isso sim. Este pode ser o melhor antidepressivo da história, mas é simplesmente tóxico demais. Olha pra ele, o rapaz mal tem 20 anos.”
“De novo, é um par de opostos saindo do lance de dados: veneno e remédio, tudo ou nada. Você viu os resultados preliminares dele, nós estamos na pista certa, Ana, sabemos que sim. Alguns sacrifícios são necessários pra que...”
“Houve um tempo em que acreditei nisso, Candy, achei mesmo que estávamos destinados a grandes descobertas, a penetrar os segredos mais bem guardados do cérebro. Uma tolinha romântica eu era, apaixonada pela sua maneira elástica de andar, pelas suas gravatas sofisticadas, por essa habilidade sibilina de sempre encontrar as palavras certas. Você sempre dominou a grande arte da retórica: fazer as coisas coincidirem com as palavras, dar a impressão de que o quebra-cabeças estava a poucos passos de ser resolvido. De uma vez e para sempre.”
“Além do mais, você sabe, esse daí não era boa bisca.”
Ana Cecília debruçou-se sobre o corpo na cama hospitalar e fechou-lhe os olhos, depois, subiu o lençol cuidadosamente cobrindo o rapaz por inteiro. Orlando da Silva Luís, paciente 23. Desligou todos os aparelhos de monitoramento dos sinais vitais. A linha do eletrocardiograma era uma reta monótona e ininterrupta. Na sua mente, clara como uma lâmpada de desenho animado, aparecia a imagem da sua cachorra de estimação imóvel sobre a mesa de metal do veterinário. Morto em poucas horas após administração endovenosa. Pico hipertensivo não respondente às drogas convencionais, somado a uma falência completa do sistema urinário: necrose renal bilateral extensa e lesões irreversíveis na bexiga. A química sem piedade, propósito ou remorsos. Estamos sujeitos às mesmas regras obscuras que infernizam nossos animais queridos, a grande coleira do não ser também está no nosso pescoço.
Candido Frota-Pessoa, psiquiatra-chefe do laboratório se fechara na sua sala e preenchia os relatórios de pesquisa detalhando cada uma das reações que o paciente apresentara antes de vir a óbito. Não era a mesma coisa de antes, ao menos, não para ela. Os novíssimos protocolos de pesquisa farmacêutica autorizavam testes fase 3 em humanos “selecionados” muito antes da segurança das drogas estar plenamente atestada em cobaias. A reanimação cardio-respiratória nem mesmo era obrigatória: os voluntários eram recrutados no presídio entre os condenados à morte. Era o novo Zeitgeist. Alguns humanos mereciam menos compaixão do que os bichos. Direitos humanos, dizia-se agora abertamente, só para os humanos direitos.
Ela e o chefe estavam imbuídos da missão mais intrigante do século, debelar a epidemia depressiva que varrera o planeta havia se tornado o Santo Graal das mentes científicas mais brilhantes e ambiciosas. Bilhões de dólares eram despejados nos laboratórios ao redor do globo, mas as descobertas não seguiam o ritmo desejado. A maioria das drogas antidepressivas disponíveis mal superavam a melhora obtida com placebos, e pior, demoravam meses para surtir efeitos parciais, além de serem pouco eficazes na prevenção de recaídas. O Super K e seus derivados, apesar de não serem propriamente moléculas novas, apareciam nas pesquisas mais recentes como a esperança de cura rápida ― e definitiva. Os cadáveres no caminho do progresso não contavam para as agências oficiais, a corrida estava apenas começando.


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