quarta-feira, 3 de agosto de 2011

na temporada dos furacões

É como uma revoada de pombos em fuga de um campanário que estronda subitamente. Hoje, principalmente agora que faço um esforço de sistematização nestas minhas memórias, percebo que as badaladas daquele sino me embriagaram o juízo e obstruíram os sentidos. Diziam-me: “Irany, você é o Collin Powell brasileiro”, “desse jeito ainda vai chegar a Ministro da Defesa”, “o primeiro negro no Estado-Maior do Exército”, ou ainda, “a importância da sua missão é maior do que se tivesse sido enviado para Marte”.


E não era pra menos, basta considerar o contexto da época: os americanos atolados no duplo front do Iraque e do Afeganistão, o Brasil aspirando ao protagonismo no cenário sul-americano e mundial, a situação na ilha deteriorando rapidamente para um quadro de guerra civil ― literalmente tudo parecia recomendar a missão de estabilização do Haiti decidida pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em 2004. Os capacetes azuis seriam majoritariamente brasileiros e a chefia militar da Missão de Paz era minha, General de Divisão Irany Damião Galdino.


Embora muito me custe, porque amo a instituição à qual servi tantos anos ― e já que aqui me permito expor o que os nossos arquivos não revelarão nunca ―, sou forçado a admitir que a intervenção no Haiti é um redondo fracasso: político, estratégico, militar, humanitário, etc. Aliás, recomendo a qualquer um que habite um lugar onde chegue qualquer coisa que leve o nome de “missão de paz”, que fuja incontinenti. Sebo nas canelas. Nada é o que as palavras dizem, e não me espantaria se esta desastrada intromissão na soberania de um país entrar para a história como um sucesso retumbante.


O que você enxerga na figura abaixo?



Tanto pode ser um pato como um coelho; poderia até ser ambos, um ambíguo pato-coelho, mas também se pode dizer que nem uma coisa nem outra, pois não passa de um conjunto de pontos e linhas... onde vemos o que queremos ver! Assim é a linguagem, com a qual começamos por representar o mundo, mas que acaba por criar um mundo próprio com seus infindáveis jogos e disfarces. Assim sucedeu a mim, Monsieur le Général Galdino, lobo-ovelha & um dos muitos arquitetos do caos que arrasta os caribenhos para a miséria e o massacre ao sabor dos impérios que há séculos assolam suas águas azul-turquesa.


Monsieur le Général. Desta maneira, com o suave acento creole, me tratava o meu intérprete e ajudante-de-ordens informal, Pascal Beauvoisin. Recrutado meio por acaso entre os milhares de jovens sem rumo nem futuro que enxameiam pelas ruas de Porto Príncipe, rapidamente Pascal se tornou imprescindível no meu trabalho que envolvia diretamente a população local. Através dele comecei a ter um vislumbre do que realmente se passava ali, e o que a princípio me parecia cristalinamente claro, mostrou ser um dos tipos mais cruéis de pato-coelho.


Foi na Ilha de Hispaniola, que hoje abriga o Haiti e a República Dominicana, que Colombo primeiro pisou a terra do Novo Mundo; no Haiti levou-se a cabo a primeira rebelião bem sucedida de ex-escravos; espanhóis, franceses, americanos, e agora, nós, a potência emergente, decidimos que não ia ser bem assim. Desde que a CIA e a NSA depuseram o último presidente haitiano democraticamente eleito, a única catástrofe que Washington e a “missão pacificadora” que chefiei não causaram diretamente foi o terremoto de 2010.


Porque até uma epidemia de cólera trouxemos para esta ilha onde 80 % das pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. Um destacamento de soldados nepaleses contaminados; perfeita ilustração de como um encontro internacional de escoteiros pode muito bem encobrir os mais espúrios interesses geopolíticos ― o nome do jogo aqui é: vamos esvaziar a área de influência de Chávez e de Cuba e o povo haitiano que engula mais umas décadas de eleições fraudadas, governos-fantoches, corrupção e violência. Quando visitei Pascal, que morria esvaindo-se em diarréia naquele nauseabundo hospital de campanha em Bel Air, percebi que tinha chegado ao meu limite.


Há lembranças de todos os tamanhos e feitios, algumas até que são formas de esquecimento, e há aquelas imagens que ficam agarradas feito pano sujo à parede da memória; era um fim de tarde mormacento no início da temporada de furacões, meados de junho, quando o calor estival vem encerrar as primeiras enchentes do ano, como de hábito, retornava ao alívio refrigerado do escritório para organizar a agenda do dia seguinte e fazer hora até que a viração noturna tornasse respirável o ar no percurso de volta para a vila militar; ia entrando quando me apercebi da sombra que se movia lá dentro ― Pascal ―, de costas para a porta, deslizava de braços abertos e estendidos como a abraçar as prateleiras da minha biblioteca, suas mãos acariciavam as lombadas dos livros, na cabeça, pendida para trás, divisavam-se as narinas dilatadas parecendo absorver um perfume raro; o moço era uma traça: devorava os romances que lhe emprestava para aperfeiçoar o português: comecei com João Ubaldo e cheguei a Adolfo Caminha; anunciei a minha presença pigarreando, um raio de luz coado pela gelosia infiltrava um resto da radiação mais luminosa do dia, ele não se mostrou assustado nem constrangido, pegara uma edição ilustrada do Kama Sutra, perguntou porque eu guardava esse livro com a lombada virada, respondi: Pascal, há certas coisas que devemos esconder; retrucou-me em francês (o que quase nunca fazia), “ah bon?, c’est dommage...”, olhou dentro dos meus olhos e pôs-se a ler um trecho: “o amor é temido e desejado por homens e deuses, a morte, os homens temem e os deuses invejam”.


Bel Air, Cité Soleil, Port-au-Prince, favela que se preze tem de vir com esse humor mordaz embutido em seu nome: que o digam Heliópolis, Paraisópolis, Cidade de Deus... Às vezes precisamos viajar bem longe para entender as lições da própria terra.

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