sábado, 21 de janeiro de 2012

A descendência de Iscariotes (I)


Josenaldo e Marieva cederam aos cúpidos apelos da matéria e fornicaram; antes que os unissem os santos laços do matrimônio, uniu-os a carne. Como não cai nem uma folha sem que Deus saiba, conceberam; porém, mesmo tendo sido abençoados, renegaram o fruto da sua luxúria carnal. Desprezavam assim o mais precioso fruto do barro humano, aquele que carrega em si o dom, a centelha divina ― a alma imortal. Cometeram grave ofensa ao Senhor, pois que se arrogaram o poder de dar a vida e a morte.
Mal haviam completado dezessete anos na época. Os pais de ambos, não obstante serem católicos, pressionaram para que não viesse ao mundo uma criança para ser criada por outras duas. Mesmo assim, casaram-se ao completar dezoito e, dois anos e meio depois de terem praticado o nefando crime do aborto, nascia o primeiro filho do jovem casal. Deram-lhe o nome de Enoque, aquele que foi arrebatado sem conhecer a morte.
O ressentimento deles em relação aos pais desviou-se para a confissão familiar: abandonaram a Santa Madre Igreja iniciando um período de intensa busca espiritual. Liam de tudo, o Tao Te Ching, o Livro de Mórmon, o Mahabharata, a Bíblia, os Analectos, o Popol Vuh, o Livro dos Mortos, o Corão, o Evangelho Segundo o Espiritismo, o Baghava-Gîta, o Zohar e o Universo em Desencanto. Freqüentavam, também, de tudo; convertiam-se, rebatizavam-se, iniciavam-se, meditavam, rezavam em todos os templos, corriam ceca e meca sem achar sossego.
Josenaldo trabalhava de corretor de seguros e Marieva fazia meio-período na cantina de um terreiro do Santo Daime. Até que lhes veio uma menina, Isabella.
Quando a criança foi trazida pela enfermeira para a primeira amamentação, Josenaldo dormia no sofá do quarto da maternidade. Ali, sozinha com o bebê que mamava desajeitadamente, Marieva teve a primeira visitação. Surgiu no quarto uma luz que aumentou até o aposento ficar mais iluminado do que ao meio dia; imediatamente apareceu ao lado da cama um personagem em pé, nu, flutuando acima do chão. Ele vestia apenas uma leve túnica da mais rara brancura, uma brancura que excedia qualquer coisa que havia visto, de uma radiância tão pura como não poderia haver cor terrena que fosse de tal modo branca e brilhante.
Não somente a túnica, mas toda a sua pessoa era verdadeiramente gloriosa e seu semblante refulgia como um relâmpago. O quarto estava claro, mas não tanto como ao redor do mensageiro. Ela se assustou, mas logo foi invadida por balsâmicas ondas de calma e o medo desapareceu. O anjo fez um sinal para que se mantivesse em silêncio e não acordasse nem o marido, nem o bebê; chamou-a pelo nome e disse-lhe que Deus o mandara porque ela tinha uma missão a executar, uma boa nova que deveria ser levada a todas as nações, tribos e línguas.
Falava com a doçura que há na voz dos bem-aventurados. Afirmou que voltaria a visitá-la com mais instruções do Salvador, que a escolhera para revelar a plenitude do Evangelho Eterno tal como fora entregue aos antigos habitantes e que havia se perdido ao longo da história. Após estas palavras, a luz do quarto começou a concentrar-se em torno dele e foi diminuindo gradativamente até a escuridão voltar a reinar, e então apareceu uma espécie de túnel que conduzia ao céu por onde ele ascendeu, devolvendo o quarto para o estado anterior ao surgimento da luz celestial.
Marieva começou a falar em línguas e profetizar. O Espírito Santo havia se manifestado nela. Josenaldo não perdeu tempo: organizou cultos de evangelização numa casinha cedida por seu melhor cliente e em breve nascia a Igreja Mundial dos Milagres de Deus. Os surdos passaram a ver, os cegos a ouvir, paralíticos a sentar, curas foram operadas, pais de famílias voltaram ao lar, homossexuais largaram seu vício, viciados se entregaram à fé, bandidos choraram, todos davam testemunhos emocionados e o eloqüente Apóstolo Josenaldo somava à vidência da esposa a sua presciência para os negócios.

Nenhum comentário:

Postar um comentário