terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Ágaton, ou do amor à Sabedoria (parte ômega)


Os atletas foram generosamente recompensados pelos óbolos saídos das bolsas dos seletos integrantes daquela reunião de bacanas; não foram poucos dentre estes a louvar a destreza, e a beleza, da intrépida trupe de efebos. Aproveitando uma pausa na algazarra instalada entre os convivas durante os folguedos do interlúdio, o general Ipsípedes tomou da palavra apostrofando-os gentilmente de modo a trazê-los de volta para a conversação séria.
― Cidadãos, se me permitis retomar uma chave mais polêmica do que poética neste colóquio, gostaria de vos dizer, sem pretensão de lhes estar a contar um segredo, que dentro de poucas décadas seremos mais uma província do império romano. O que isto mudará em nosso dia a dia? A princípio, pouca coisa, já que a águia romana agarra, mas não aperta muito; trata-se de uma civilização universalista e antropofágica, relativamente tolerante, uma potência bárbara emergente como as que vão governar o mundo conhecido de agora em diante. Debalde escolhemos os nossos políticos, o verdadeiro governo está longe daqui. Vede como é desoladora a situação de dependência econômica da nossa querida Magna Grécia: estamos hoje de joelhos diante de nações gigantescas e frias a quem estendemos as mãos em pleito desesperado. E o que destes potentados obtemos? Esmola curta e chicote longo. Estamos mas é, desculpai o calão, funicados e mal remunerados! Receio mais que tudo, neste panorama sucinto que vos esbocei, o lugar que o futuro reserva à democracia, esta flor da cultura grega, conquista que tanto nos custou a nós, cidadãos da Hélade; o maravilhoso sonho de criar uma federação de cidades-estado onde cidadãos esclarecidos decidem livremente sobre o seu destino. Não chegarei ao ponto de afirmar que a nossa forma de vida atingiu a perfeição, diria antes que encontramos um delicado equilíbrio na dinâmica das formas: a mesma divina proporção que utilizamos para representar nossos deuses e construir templos, se encontra nas conchas do mar, no crescimento das plantas, na música das esferas...
― Perdoa-me, amigo Ipsípedes, se te interrompo, mas é que não posso deixar de lembrar o malogro de Platão: o grande filósofo quis mais do que a parte contemplativa do saber (gnôsis) e lançou-se por duas vezes à aventura da práxis (ação) política em Siracusa, onde reinava o tirano Dionísio, o Antigo. E no que resultaram tais aventuras? Desterro e prisão. Imaginai que ele, o homem que idealizou uma República (Politéia) ideal, chegou a ser feito escravo por tentar fazer da utopia realidade!...
― Mas, justamente, Irineu, não percebes que levas água para o meu moinho? Platão via com maus olhos a democracia, pois nela nem sempre o mais preparado recebe mais votos; como a justiça (thêmis) não era forte, quis ele educar a força (dynamis) para que se tornasse justa. Deu no que deu. Isso de querer lidar com tiranos, mesmo os esclarecidos... Como queria demonstrar, não há muito a melhorar em nosso sistema. O que me preocupa, neste momento em que nos ocupamos de disputas paroquiais, é que não há nelas lugar para a sabedoria ou a razão. Atualmente, eleições só proporcionam boas oportunidades para os astutos.
O céu perdia lentamente seus azuis, cambiando para uma paleta mais variada onde compareciam amarelos, laranjas, vermelhos e violetas em surpreendentes justaposições; as andorinhas davam seus derradeiros vôos rasantes no arvoredo próximo e nos beirais dos telhados. Ágaton, até então aparentemente ensimesmado, levantou e pôs-se a deambular para melhor dar curso ao seu pensamento peripatético enquanto falava.
― Tão tolo é aquele que de tudo discorda, quanto o que dá razão a todos; porém, Ipsípedes e Irineu, irei contra e a favor de muito do que acabastes de falar. Que a crise grega é séria até o cego Tirésias pode ver, cidadãos beócios, e a tal monta chegaram minhas preocupações com o assunto que fui ao Oráculo de Delfos consultar as sacerdotisas de Apolo; após aspirar as inebriantes emanações de gás que saem das entranhas do monte Parnaso, a Sibila entrou num transe e me contou das incríveis realidades que os tempos futuros trarão. Sim, porque, nós gregos, temos a posteridade a espiar sobre nossos ombros, tudo que dissermos e fizermos será discutido pelos séculos por vir; imaginai semelhante responsabilidade se, por um desses misteriosos acasos da História, este nosso diálogo for preservado para os homens e mulheres que viverem, digamos, dois milênios depois de nós? Notai que disse homens e mulheres, pois que chegará esse dia em que todos serão cidadãos e não mais haverá escravos, em que toda a humanidade estará interligada numa comunidade de trocas instantâneas de informação pelo éter; todos terão acesso ao conhecimento e aos meios de utilizar tal sabedoria para tornar suas vidas melhores. Pois sabei que é esta a sagrada missão da filosofia: transformar todos e cada um em pensadores e poetas; já que contemplar (theoreín) e criar (poeisín) são tarefas ao alcance do comum dos mortais, seja ele grego ou bárbaro. Entendo que o mundo será dos muitos, e é preciso que nele haja lugar para todos; digo-vos que a filosofia na verdade é uma forma de nostalgia do que ainda não existe, o impulso de sentir-se em casa em toda a parte. Amai a Sabedoria (Sophia), portanto, amai-a na alegria e na tristeza, quando estiverdes cansados, sentindo medo ou mágoa; haverá tristeza nela, mas será uma tristeza confortada; alegria, mas constante e delicada; cansaço, mas pleno de coragem, paciência e infinito perdão; e isso tudo, meus amigos, esse som mavioso e melancólico, é a voz da sabedoria.
A escuridão já reinava quando soaram as últimas palavras do filósofo. Acenderam-se as tochas; Ágaton pode ver quando o seu rubicundo discípulo Afrodísio, acompanhado de um acrobata, adentrava o bosque imerso em sombras.

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