domingo, 10 de junho de 2012

O quartel de Dona Mocica (epílogo)





            No mundo ― dizia Balzac ― não há nada que saia de um bloco único, tudo nele é mosaico. Não obstante, a imagem que se conservou em mim dos avós de Bauru é fotográfica; um cromo amarelado do álbum que mamãe guardou por toda vida e hoje integra o meu acervo.
É como se eles já não pudessem mais deixar as roupas e a idade que os sais de nitrato de prata fixaram no Studio Photographico Cantarelli: meu avô Joaquim, a farta barba hassídica a tornar mais fundos os olhos negros, as orelhas enormes, a calva coroada pela penugem rala do cocuruto; veste um paletó de tecido escuro e grosso, igual ao colete, a camisa branca de colarinho duro com as pontas dobradas como os cartões de visita, encimada por uma gravata preta lavallière. Ao lado dele, a figura meiga, mas altiva, de Vó Nininha: miúda, a boca fina a rasgar a suavidade do rosto com um ar zombeteiro, os cabelos presos no coque simples; nela sobressai a graça diáfana do vestido claro de mangas compridas, cheio de nervuras na frente, gola alta e debruada de rendinhas, arrematado por uma pelerine sobre os ombros.
O mesmo não ocorre com a casa em que moravam, esta, ainda agora posso percorrer de olhos fechados de cima a baixo, cômodo por cômodo, palmo a palmo, aqui, conheço o conteúdo de cada gaveta, o secreto perfume de cada recôndito; como se as reminiscências daquele período nunca houvessem esmaecido e a arquitetura do casarão, há muito demolido, resistisse em minha carne, ossos e nervos ― grão da imortalidade possível na alma corpórea.
Casa que, na verdade, era um palacete maciço de três pavimentos; bem ao estilo português, erguido no limiar da calçada. No andar térreo ficava o porão, de altura regular e plenamente habitável; o segundo andar era o plano nobre da habitação; no terceiro piso, os dormitórios. Nestes andares superiores, duas varandas simetricamente dispostas guarneciam a fachada principal; a primeira, ornada com arcos apoiados em robustas colunas fuseladas; e a segunda com pilastras pergoladas, cobertas por alamandas e buganvílias que subiam do quintal. Dois portões laterais de ferro, de esplêndida serralheria, davam acesso ao casarão; o da esquerda, mais estreito e ao nível do porão, levava às áreas de serviço e edículas; o portão da direita, mais amplo, constituía a entrada principal. Ao lado da entrada dos carros ficava a escadaria que conduzia à varanda do segundo andar, pavimentada com ladrilhos hidrográficos e assentada sobre um largo parapeito de onde apreciávamos o movimento da rua.
A única porta utilizada para ingressar na casa era a que ficava na ponta final do terraço; por ela se adentrava um pequeno foyer que dispunha de janelas duplas com vidro fosco e um porta-chapéus em madeira escura, cabides de prata e espelho de cristal. Pelas bengalas, sombrinhas, chapéus e casacos ali pendurados, sabíamos imediatamente quem estava em casa no momento. A partir deste compartimento abria-se um grande corredor que dividia a habitação em dois corpos distintos ligados por cômodos sucessivos; do hall, subia a imponente escadaria de dois lances em pinho-de-riga que conduzia aos quartos. O pé direito do segundo piso, desmesuradamente alto, dava ao hall um vão livre de cinco a seis metros, de cujo zênite um vitral despejava caleidoscópicos reflexos amarelos, verdes e vermelhos. Seguindo pelo eixo central, havia portas que abriam para a sala de estar ― a qual só uma vez vi aberta para receber visita de grande cerimônia ― e a sala de jantar, o maior cômodo e o centro afetivo da casa. O refeitório dava para o quintal através de uma escadaria em curva; depois, sucessivamente, vinham a copa, o lavabo e a cozinha.
O pavimento superior, reservado aos dormitórios, reproduzia a disposição do andar de baixo; no corredor, o tique-taque contínuo do carrilhão, em cujo mostrador lia-se uma frase em latim: tempus fugit irreparabile. Situado acima da saleta da entrada, ficava o quarto que fora de mamãe em solteira; a seguir, outro quarto, o de meus tios, e que servia de rouparia. Marcantes eram as duas enormes cômodas desta rouparia, com gavetões da base à face superior que pareciam feitos para gigantes; continham roupas de cama, fronhas, lençóis, toalhas de mesa, rendadas ou adamascadas, recendendo a cânfora em meio a bolinhas de naftalina. O quarto dos meus avós, logo a seguir, tinha as dimensões da sala de jantar; por fim, vinham o banheiro e mais três quartos, dois dos quais ocupávamos nas férias; no último dormitório, morava a tia-avó Inácia.
Havia apenas um banheiro no terceiro andar e bacias de ágata em cada dependência para as abluções, mas sempre preferi o lavabo do corredor, onde fingia usar o sabonete “de bola” dependurado a uma corrente junto à pia; dali, espiava de través o quarto de Dona Inácia, a irmã mais velha de meu avô que o criara desde os seis anos de idade depois do falecimento da minha bisavó. Poucos eram admitidos na sua presença, e nunca crianças, visto que a nossa algazarra parecia incomodá-la sobremaneira. Impressionava a nudez do aposento: apenas a mobília indispensável, nenhuma gravura na parede, nenhum enfeite, sequer um tapete no assoalho. A tristeza, companheira de toda a sua vida, vencera por fim; magérrima, sempre de pijama, ora deitada na cama de patente, ora sentada na cadeira austríaca de balanço a ler jornais, mantinha-se em obstinado silêncio. Seus olhos vazios, nas poucas vezes que cruzaram com os meus, jamais pareceram reconhecer minha presença. Hoje, visitado freqüentemente pelo cão negro da melancolia, entendo afinal que infinito mirava aquele olhar.
O que nunca alcancei compreender, e devo levar para o túmulo como enigma da vida inteira, foi um episódio envolvendo a governanta daquela casa, Dona Mocica. Em tudo e por tudo, era como um contraponto de Vó Nininha; miúda como ela, Dona Mocica em todo o resto se lhe opunha: as feições duras, o ar marcial, as vestes sempre negras, como se estivesse num luto eterno. Nunca a vi sorrir para ninguém, assim como nunca soube o seu verdadeiro nome; sua única particularidade conhecida era o orgulho que tinha do avô, oficial combatente da Guerra do Paraguai. Morava no andar de cima da edícula situada no fundo do amplo quintal. Ali, no espaço mítico que ia da garagem aos confins do galinheiro, se estendiam os domínios do meu reinado; por aquelas bandas vicejavam roseiras, buxinhos, crótons, dracenas, acalifas, damas-da-noite, manacás, jasmineiros, em deliciosa anarquia.
Foi durante umas férias de meio do ano, disso estou certo, pois era época de colheita do café. Não lembro porque, parte de um dos carregamentos ficou estocada nos fundos do casarão. Passei a tarde subindo e descendo as sacas empilhadas nos “meus” vastos territórios, até que me dei conta de que, subindo pelos sacos de aniagem rente ao muro da edícula, obtinha uma visão do quarto de Dona Mocica. Cooptei meu primo Nando para a aventura; Nando, um ano e meio mais novo do que eu, estava convencido que a pobre senhora era bruxa. Combinamos então uma expedição noturna para surpreender o pretenso sabá. Chegada a hora, percebemos que a escalada no escuro era bem mais problemática; por sorte, a unha-de-gato do muro facilitou nossa tarefa.
Trepados nas sacas que enchiam o ar com o cheiro do café, ocultos pelas sombras da noite, devassávamos a intimidade da governanta ― e, assim, descobri o quanto a realidade ultrapassa a mais louca fantasia. Eu e Nando não tínhamos idade para saber o que era aquilo, mas sentíamos a estranha eletricidade que nos percorria de alto a baixo: diante dos nossos olhos estupefatos, víamos aquela austera senhora travestida de militar andando pelo quarto. Era o uniforme completo do Regimento de Osório, tal qual o conhecíamos das figurinhas do sabonete Eucalol: o boné de pala azul, o dólmã azul-ferrete, as dragonas douradas no ombro, o cinto talabarte branco a combinar com as luvas, e as bombachas azuis, com as botas de couro preto cobrindo-as até aos joelhos.
Dona Mocica sorria.


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