sábado, 2 de junho de 2012

Manuela, Barbara, Barbarella (parte final)



Como combinado, o signore Renato veio buscá-la no ponto de ônibus depois da aula de música; Manuela despediu-se da amiga que a acompanhava e embarcou na imponente BMW preta cuja porta um motorista uniformizado lhe abria de quepe na mão. Pararam numa gelateria nas imediações da Ponte Vittorio para se refrescar; os dois homens pareciam muito empenhados em detalhar com ela cada passo do importante encontro marcado para mais tarde com Mister Barkley, o representante da Avon Cosmetics Company.
Renatino e Pierluigi, o motorista, divertiam-na imensamente, principalmente este último, com sua cômica magreza e a voz infantil a contrastar com o linguajar chulo de forte sotaque ligúrio; aquilo que diziam tinha o poder inebriante de um licor exótico: a entrevista em inglês com um americano importante, os milhões de liras ― que ela se apressou a dizer que dividiria com os irmãos e os pais ―, as futuras capas de revista, etc. Não conhecia aquele sentimento, uma doce euforia que inunda a vida de possibilidades e tão facilmente se confunde com a boa ventura.
Gravou uma mensagem que entregariam à sua família para que se tranqüilizasse: nos próximos dias estaria envolvida em importantes negociações, ocupada de tal forma que talvez nem conseguisse telefonar para eles. A mensagem terminava com um recado para a sua irmã preferida, Loretta.
― Fique feliz por mim mana, nunca me senti tão bem, acalme papai e mamãe, você sabe como eles são, vêem perigo em tudo. Todos me tratam tão bem! Estou fazendo o que você sempre me disse para fazer: ir atrás dos meus sonhos. Não tenho realmente necessidade de um prazo para refletir, estou consciente do caminho que escolhi. Você pode fazer a sua vida sem mim mais facilmente do que eu sem você; não precisa de ninguém para construir o seu lugar no mundo. Comigo é diferente, me sinto como as andorinhas a brincar no céu... penso muito no que você me disse um dia: “quanta liberdade, por tão pouca responsabilidade”. Quando puder, volto e te conto tudinho, Lori, agora eu sou Barbara, a Barbarella, recorda?

Na casa dos Morandi o clima é de apreensão e terror naquela madrugada de quarta para quinta feira. Emanuele, o pai, desmoronou na poltrona depois de dar os três únicos telefonemas de que foi capaz: ligou para a polícia para comunicar o desaparecimento; para Irmã Costanza, diretora do conservatório, pedindo para ser imediatamente avisado caso alguma das colegas de aula tivesse informações; e, finalmente, para o arcebispo Casimir Markevicius, seu chefe no Banco do Vaticano. Confusamente, temendo as conclusões, ia juntando os cacos de conclusão na sua cabeça; a reação do monsignore deu a entender que o pior tinha acontecido: Manuela fora seqüestrada pela Máfia.
A polícia sugeriu que esperasse, afinal, o mais comum nestes casos é que a menina estivesse “passeando com amigos”.
Ele sabia, sabia de tudo e não podia abrir a boca; se o fizesse, as coisas poderiam se tornar ainda piores para a sua filha naquele momento. Sabia até o preço do resgate ― que nunca seria pedido à família ―, duzentos e cinqüenta milhões de dólares! Os filhos e a mulher estavam feito barata-voa pela casa, iam e vinham até perto do telefone, paravam como se lembrando de algo, para retomar em seguida a peregrinação aleatória com o olhar perdido. Ninguém dormia.
Emanuele Morandi arriscara demais ao fazer da sua menina protegée do todo-poderoso Markevicius; conhecia a fama do americano: fumava charutos cubanos, freqüentava salões e academias de ginástica muito mais do que sacristias, dividia a mesa com gângsteres e a cama com atrizes. A falência do Banco Ambrosiano causara pesadas perdas nas finanças do crime organizado, e eles agora buscavam reaver o dinheiro à sua maneira brutal. Do alto da torre Nicolau V, onde tinha certeza de não ter seus telefones grampeados, o monsignore acionava sua multitentacular rede de contatos; assegurando às famiglias ítalo-americanas que faria de tudo para indenizá-los. Soube que a adolescente estava nas mãos da Banda della Magliana, uma gangue romana chefiada por Enrico de Pedis ― o Renatino.
Apesar do apoio incondicional do Papa, que jogou seu prestígio para impedir a prisão do arcebispo pelo governo italiano, ninguém conseguiu dobrar o implacável secretário Agostino Casaroli, que já havia bloqueado a promoção de Markevicius à púrpura cardinalícia. A Igreja não reconheceria as contas secretas da Cosa Nostra em seu banco.
Dez dias depois, durante o Angelus da missa, o Santo Padre apelou aos captores de Manuela pela sua libertação. A hipótese de seqüestro era admitida oficial e publicamente pela primeira vez.

― Ninguém tinha me avisado que viria de Nova York para “fazer” uma criança... ― Donny Gambalonga, o tal Mr. Barkley, é na verdade um killer americano designado para acompanhar a operação de cobrança pelo clã dos Genovese.
― Se te faltar o sangue-frio, cugino, nós mesmos damos conta do caso ― De Pedis gostaria de resolver as coisas sem ingerências externas, mas ordens são ordens.
― Hmm, estou aqui para resolver problemas. É o meu trabalho. Se não fosse eu a fazê-lo, seria outro... não me custa mais nem menos. É verdade que a garota era do monsenhor?... Ok, acho que vou “brincar” um pouquinho com ela, antes.
Manuela compreendeu finalmente a verdade. Como sucede mais ou menos a todo mundo, aprende-se com a vida, mas sempre tarde demais.

― Vai doer muito, quer dizer, quando...?
― Não, bimba, vai doer só durante um minuto. Depois, passa tudo.

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