domingo, 13 de janeiro de 2013

Prainha (I)



            O morro nem se pode chamar propriamente de montanha, embora o esboço dos picos, pedregosos e alcantilados, lembre dedos indicadores que apontam o espaço assinalando aos homens a trajetória inviável. Atrás dele, o sol se põe todos os dias. Dois contrafortes laterais descem num declive abrupto desde o topo, inclinando-se mais suavemente à medida em que avançam algumas dezenas de braças na linha do mar, delimitando assim a pequena enseada onde fica a Prainha ― como braços de um colosso enterrado até a cintura que ousasse recortar nas areias do litoral o refúgio do seu mundo de caprichos. Esticada numa reta imaginária, a praia chegaria mais ou menos a um quilômetro de extensão; rasa, tépida e com poucas ondas, mais parece uma piscina de água verde-escura defendida por falésias ligeiramente dissimétricas, a norte e ao sul, e por uma barreira de recifes e rochedos marinhos a quinhentos metros da orla. Um enclave, se de sonho ou pesadelo, inferno ou céu, não saberia dizer. Olhando do mar para o continente, o imenso calhau se apresenta revestido por uma colcha de mata compacta; a encosta meridional, a menor delas, à esquerda, é metade descampada, exibindo uma cobertura rala de capoeirões e tufos esparsos de capim-gordura ― exposta à adustão, e com uma camada de solo menos profunda, é a fralda da montanha fustigada pelos constantes incêndios do período de estiagem. Nesta época do ano, em que o manto florestado perde a intensidade dos seus tons verdejantes, e o vôo do tiê-sangue é apenas um rasto encarnado e fugaz, é quando os ipês-amarelos enfeitam o morro com seu ouro invernal, auxiliados pela floração dos portentosos guapuruvus, os gigantes-de-pés-de-barro da mata.
            A comunidade não deve ter menos de cem, nem mais de duzentas pessoas. Nunca contamos para saber. Aliás, não contamos nada e ninguém registra nada: os dias, os anos, as datas sagradas ou as profanas; aqui, todo dia é dia de viver, de trabalhar, de descansar, de dormir, de sonhar... e de esquecer. Somente se presta um pouco de atenção às estações do ano, porque a duração dos dias e das noites tem uma importância especial para todos. Nem mesmo a própria idade cada um de nós sabe; até onde posso constatar sobre mim mesmo, sei que não sou criança nem velho. Temos um líder, mas que não manda grande coisa, para falar bem a verdade, a maioria ignora quem ele seja; digamos que funciona como uma espécie de administrador de conflitos e conselheiro para os momentos difíceis. De tempos em tempos, sem nenhum motivo aparente, trocamos o chefe antigo por um outro qualquer, que, muitas vezes, nem queria a amolação do cargo.
            Progressivamente fomos abandonando a agricultura: a caça e a pesca são de tal modo abundantes, e os frutos silvestres se alternam tão prodigamente durante a temporada, que praticamente só nos damos ao trabalho de pegar o que cai na mão. A pesca é, literalmente, brincadeira de criança; basta vedar a saída dos peixes na altura dos recifes quando a maré baixa, para vermos as redes se encherem de anchovas, bonitos, tainhas, albacoras, baiacus (estes, evitamos comer), mulatas, sororocas, piranjicas, namorados, bodiões, corvinas, pargos, badejos, frades, garoupas, cavalas, xaréus, voadores, bagres, pescadinhas, e até mesmo alguns golfinhos e deliciosas tartarugas. Vez que outra, capturamos um bando de bugios na mata e armamos uma bela churrascada comunitária, já que porcos-do-mato, capivaras, patos e veados são bem mais raros nestas bandas.
            Que eu me lembre, só tivemos um período de crise propriamente dita, e foi há muito, muito tempo, acho, ou, melhor dizendo, tenho certeza, porque ainda era um guri que vivia trepado em árvores caçando passarinho, e corria mundo atrás de calango, fazendo armadilha pra cutia ou desentocando ninhos de cobra. Tinha havido uma série incomum de incêndios na mata, o que afugentou a caça e dizimou as frutíferas da estação; isto, combinado a um evento muito mais raro, a maré vermelha, produziu aquela inédita escassez de alimentos. Passamos um aperto, vivendo à base de fruta e farofa, mas nada que chegasse às raias do desespero: organizaram-se grupos de trabalho, que mais pareciam equipes de uma gincana, e vencemos a fase ruim labutando como quem folga.
Colhemos a mandioca-brava e a fervemos longamente pra tirar o veneno, de modo a obter a farinha; enquanto isso, outro grupo se embrenhou no mato à procura do pau-formiga, de cujo tronco comprido e delgado vinha o outro ingrediente da saborosa farofa: formigas. Era uma festa: a molecada, numa assuada incrível, batia com paus e pedras no oco das árvores compridas, e de lá borbotavam as bichinhas espaventadas, prontas para serem recolhidas aos milhões. Iguaria quase inexaurível, prova de que a necessidade é o melhor tempero. Por outro lado, demos sorte porque também era tempo de pacovas, e estas se concentravam no lado que as labaredas preservaram.
A pacova lembra uma palmeira, pelo crescimento das folhas e pela altura, mas se desenvolve como uma cebola. No início, mal se distingue o bulbo cheio de barbelas que, tão logo brota à flor do chão, lança folhas abraçadas ao caule, e arriba engrossando e deitando novas folhas pelo seu olho, de onde pendem da cana central em hastilhas rendeadas. Quando a sua constituição atinge a altura de cinco metros já deita flores, roxas, grandes, do feitio de espigas de milho, que brotam do mesmo olho das folhas ficando de banda, em cachos; estes crescem, sempre conservando um bolão fechado na ponta, até três palmos de comprido e desfolham, saindo de dentro deles os frutos, semelhando figos ― são as pacovas.
Fruta deliciosa, maciça e sem caroço, de casca tão tenra que basta meter-lhe a unha para a desembaraçar de sua túnica; uma única pacova alimenta um homem feito por todo o dia. Sustento, fartura e delícia de todos ― quem viveu aquela época sabe que sem as formigas e as pacovas teríamos morrido de fome.

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