sábado, 19 de janeiro de 2013

Prainha (III)



Medrei, arreguei, caguei no pau, fugi da minha fuga. Vergonhosamente. Desabalei pela mata fechada correndo no pinote doido, na pressa, deixei pra trás a zagaia que levara para me defender. Acho que fiz o caminho da volta em um terço, minto, um décimo do tempo da ida. Foi a pior coisa que me aconteceu na vida; por uma vez, uma única vez, tive o tutano para fazer uma aposta, tentar algo realmente diferente. E falhei. Perdi pra mim mesmo; se a bicharoca estava lá ou não, nunca vou saber, mas agora sei o tamanho do medo que me habita ― agora sei que nenhum dos meus conterrâneos vai sair desta arapuca que chamamos Prainha; esta tira de areia branca, este pedaço de floresta, este naco de montanha, esta laguna de arrecifes, estas falésias, serão tudo que veremos do mundo. Berço e túmulo.
Quando finalmente pus os pés no povoado, não me perguntaram nada. Cheguei a tentar convencer alguns amigos a organizar uma expedição exploratória aos confins do território visível. Ninguém se interessou. Acabei por me reintegrar à letargia costumeira, mas percebi que já não podia me livrar do que havia acontecido. Aquilo deixara em mim uma marca indelével, e isto é o que faz memória: uma dor, que até se pode esquecer, mas não se pode apagar. Pedi ao desenhista da tribo que me fizesse uma tatuagem; ele levou três luas inteiras escarificando diariamente a minha pele com agulhas feitas de pena de atobá embebidas na tintura de urucum. Carrego a onça parda na pá do braço esquerdo; ela não me vê, nem eu a ela, mas eu e ela sabemos.
Passei a freqüentar os abrigos dos anciãos, queria saber do “lado de lá”; estava ávido por informações, a alma crivada de perguntas que não encontravam eco no coração e na mente dos outros. Acreditava que nas lembranças de algum dos mais velhos pudesse encontrar pistas do que haveria além dos muros invisíveis desta prisão risonha. Perdi meu tempo tentando arrancar deles um qualquer fio coerente de narrativa, tudo de que dispunham era um cabedal de delírios frouxos, lapsos de memória e fabulações acerca de fantásticas viagens pelo espaço, fugas em massa de um planeta azul cujos recursos se esgotaram. A decana dos praianos, uma senhorinha miúda, engelhada feito maracujá seco, me entreteve com suas ladainhas sobre a “visão total”.
A história que me contou tinha algo de mais concatenado, embora fosse rocambolesca como as outras; ressumava a mesma saudade do abandono do lar, do deixar para trás um mundo condenado. Aos seis anos ela teria sido embarcada na esquadrilha de naves, numerosas como nuvens de gafanhotos, em fuga do planeta moribundo; a certa altura depois da decolagem, saíram do campo gravitacional e ela flutuou até a escotilha: “A visão era dinâmica, viva como um poema... as luzes das cidades, a linha separando noite e dia, estrelas cadentes passando abaixo da gente, as auroras dançando nos céus, as tempestades e os raios subindo e descendo... Tudo ao mesmo tempo, passando rápido pela espaçonave, um sentimento profundo de união com o planeta, com o Cosmos; uma emoção primitiva, e até então desconhecida, de transcendência, em que o eu deixa de ser importante e emerge o sentido coletivo, a conexão.”
Enfim, não obtive o que procurava, embora me houvesse impressionado a paixão que ela punha nesse relato lendário. Despediu-se de mim um dia com uma afirmação enigmática: “Viemos aqui para recomeçar, queríamos evitar os erros cometidos lá”. “Lá, onde?”, perguntei. “Lá”.
Prainha é um mistério que nunca vou conseguir resolver. Um outro exemplo: há por estas bandas um passarinho muito serelepe, de asas verde oliváceo, peito amarelo e cocuruto vermelho, que se chama gente-de-fora-vem. Ora bolas, como assim?, aqui não vem gente de fora, menos ainda gente pra fora vai, de onde tiraram semelhante alcunha? Será a auto-ironia desta gente trigueira e folgada? Porém, nem tudo acaba em piada neste lugar. Havia esse moleque a quem nomeamos Suiriri, porque, tal como o pássaro, tinha a habilidade de catar insetos em pleno vôo e comer. Um quarto de lua atrás, recolhíamo-nos na Casa dos Homens ao cair da noite, como é nosso hábito, quando a mãe do piá percebeu que ele não se encontrava no galpão. Um rebu armado: a mulher berrava, arrancava os cabelos, chorava, queria porque queria abrir o pesado portão e ir buscá-lo no meio do lusco-fusco que avançava rapidamente.
Foram necessários cinco homens para contê-la, outras tantas mulheres para acalmá-la mal e mal; uma gritaria danada, um chororô sem fim. Não havia nada que pudesse ser feito, ela sabia, todos sabíamos. Ainda que a deixássemos abrir a porta, o que já seria um tremendo perigo, nem ela, nem um exército armado até os dentes e composto por todos os habitantes, seria páreo contra os demônios noturnos que infestam as redondezas. Não se entende como criaturas tão indefesas durante o dia tornam-se tão poderosas na escuridão.
Foi horrível. Passamos a noite em claro, ouvindo; primeiro, os gritos agudos do moleque quando o atacaram; depois, os guinchos medonhos das avantesmas disputando os pedaços dele. Quando raiou o dia, encontramos os restos do infeliz próximo ao ribeirão que desce da encosta norte; o corpinho esquartejado e dilacerado por terríveis arranhaduras, mas a carne intocada; o rosto estava irreconhecível, a calota do crânio tinha sido arrancada para lhe sugarem o cérebro. As bestas só comem miolo.

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