sábado, 11 de outubro de 2014

a técnica perdida de achar coisas que não existem (final)



Ela achou uma boa idéia acompanhar-me ao quarto do hotel. É tão precioso quanto raro termos a oportunidade de observar aqueles momentos em que nos damos conta do ultrapassamento do paradigma sob o qual vivíamos até então ― a princípio sobrevém o susto, o prazer de desbravar novos continentes sendo sempre menor que a angústia pelo aconchego perdido. Alguns encontros podem desencadear esta percepção polifônica no instante mesmo em que a nova visão de mundo se ergue sobre os escombros da antiga, cobrindo-a com o seu aluvião irregular de promessas e possibilidades.
― E então, que cara é essa? Parece até que viu assombração... já não sou a mesma sem as luzes da balada, o glitter, a música, a vibe?
― É a única cara que tenho, a mesma há tanto tempo que nem sei. Já você, mudou sim, parece aquelas imagens que se alteram conforme assumimos posições diferentes em relação a ela.
― Conversa fiada, eu sou como você, sou exatamente o que querem que eu seja. Fala a palavra, cara, tra-ves-ti. Será que você é um daqueles que acham que quando não se dá nome à coisa ela não existe?
Ela tomou fôlego. Caminhou teatral até ao criado mudo e conectou o smartphone no console ao lado da cama, o quarto se encheu dos primeiros acordes sujos da abertura de Let Me Stand Next To Your Fire.
― Posso me transformar sucessivamente em cacto, homem, pássaro, mulher-inseto; sou hermafrodita como as flores, dividida como os vermes. Você, benzinho, está no mesmo business que eu, o verme do bispo e todos os aiatolás: o comércio da alma, o negócio da ilusão. Eu sou trans, e você, não é meio que isso mesmo?
― O que você sabe sobre mim, aliás, o que pode alguém saber sobre mim quando eu mesmo esqueci o que era?
― Sei muito bem quando encontro meu igual na diferença. Sei que você é uma criança morta dentro de um adulto sem sustos, um cara sem o conhecimento retorcido que só tem quem sofreu por amor. Sei o quanto é incapaz de amar alguém, mas que, em compensação, deixou de sofrer por amor a si mesmo, e já não precisa do beijo da mamãe antes de dormir porque se entupiu de comprimidos.
― O prazer que o amor oferece vale realmente a felicidade que destrói?
― Ah, sim, não é o que dizem? As pessoas erram quando amam, saem machucadas e infelizes de cada paixão... mas amaram! Quando se lembram do passado, podem dizer a si mesmas: me fodi, enfiei o pé na jaca, mas ainda assim, amei. Fui eu que tive essa vida, e não uma pessoa inventada, criada pelo meu orgulho, minha nostalgia, meu tédio.
― Não lembro de nada. Vivo a vida que todos sonham, só que não: sou um caminhante sem passado, sem mapa, nem direção.
― Bom, muitas coisas não são pro nosso bico ― ela começou a tirar uns sacolés da sua imensa bolsa de marca ― Mas somos do grand monde, figuras de ação, e figuras de ação estão sempre ocupadas demais em surfar a onda seguinte. O futuro chegou, e o futuro somos nós, os zumbis.
― Que é que você tem aí?
― O que você quiser. Erva, pedra, bala, meta, doce ou pino?
― Hum, acho que vou de bright...
Esticou duas taturanas brancas no tampo da mesa de vidro.
― Se liga aí, tamanduá, essa é da pura. Zero-zero-zero. Vai manerinho.
― Jura? Sniff, hum, coisa fina... muito melhor do que tava rolando na festa.
― Você tentou se matar? É, não disfarça, não, conheço essas marcas no seu pescoço. Aah, que delícia, pozinho do bom... Sabe, já tentei isso várias vezes, tenho janela, uma vez foi a minha cachorra que impediu: começou a latir que nem uma louca, girando em volta no banquinho que eu tinha subido. Já tava literalmente com a corda pescoço.
― Quer dizer que você não é só uma morta-viva, também é bruxa nas horas vagas...?
― Hahaha, todos os meus muitos vícios foram compensados por amplas graças, se pudesse trocava as portas de céu e inferno, desnortearia a terra inteira! Que mundo é este? Não sabemos, por isso é tão assustador. As entidades aqui não morrem, habitam soltas na história, espreitam no ar escuro ao nosso redor como velhas deusas selvagens, terríveis, completamente imunes a qualquer senso de certo e errado.
― Porra, mina, tu tá bem louca. Tô sacando nada do que cê fala.
― Escuta, você é rico e famoso, mas, famoso quem? Poderoso pra quê? Uma puta inutilidade tudo isso... não é uma inutilidade total apenas porque os outros desejam esse ouro de tolo. A maravilha corta em mim sua navalha, e eu me desfaço em dobras e camadas como se a minha memória fosse minha e dos outros também, como se eu fosse a hora maluca que cria seu próprio horário. A boca mais banal, a paisagem mais desinteressante, o círculo eterno dos bois na mó. Tudo pode acordar em nós.
― Só conhecemos as coisas depois que elas retornam a nós por meio da imaginação, da memória, do pensamento sonâmbulo... um momento breve como um relâmpago, fragmento evanescente do ser em estado puro.
― Bagulhos antigos, tênis sem cadarços, programas de televisão, rostos desconhecidos, estão todos sujeitos a um estranho fenômeno: podem despertar pra nós. Vasos com murtas, palavras, um simples aperto de mão, a revelação ronda a consciência com patas de veludo, estalando feito mola que já havia neles, mas dormida, eriçando a penugem que roça em nós o mais profundo e leve.
― Conta uma coisa pra mim sobre você, da sua vida, a história mais verdadeira que possa contar...
― Eu fui um menino de seis anos que já sabia que era menina. Esperava meus pais saírem pra me vestir com os vestidos de mamãe. Ficava horas diante do espelho ajeitando a cintura, preenchendo o decote, dobrando a barra da saia maria-mijona a arrastar no chão. Depois, cansava, ia pro sofá da sala espiar a casinha do relógio-cuco na parede, esperando pela hora angustiosa do passarinho cantar. Horas e horas nisso. Pedia a Deus todos os dias que me levasse, minha vida não valia a pena, me devolvesse pro nada por favor. Um dia meu pai passou em casa no meio da tarde e surpreendeu-me ali, sentado na sala, vestido de mulher. Fiquei apavorado, esfregava as mãos, cosido ao sofá pelo terror. Não disse nada. Aproximou-se por trás em silêncio, eu mal ousava respirar. Senti que ele ia me libertar daquela miséria em que vivia, desejei com todas as forças que fosse em frente, até o fim. Nesse momento, o cuco saiu da casinha ensaiando seu refrão. Meu pai correu para o relógio, arrancou o pássaro do carrilhão e foi embora de casa. Nunca mais voltou.
(...)
― Então, estamos aqui no seu quarto e tal, vai ser só papo?
― Sempre é assim?
― No final da noite, gatinho, sempre querem alguma coisa de mim. O que vai ser? O furico? A jeba? Ou os dois?


Nenhum comentário:

Postar um comentário