sábado, 3 de janeiro de 2015

Perivaldo e Cecivânia #8



Caiu da cama cedinho no dia seguinte, despertando de sonhos inquietantes. Viu-se num quarto pequeno, anexo a um sanitário e uma lavanderia, sozinho naquele lugar desconhecido, como tinha ido parar lá?, sentou na cama enquanto o branco total radiante se estendia no varal da sua mente. A cada dia era como se acordasse num país diferente. Sacudiu o entorpecimento de sono e cansaço acumulados nas últimas 24 horas, alongou os músculos, vestiu-se. Já mais localizado, aproveitou pra dar um rolê no jardim bem cuidado que levava à cozinha nos fundos da casa, ali, no meio do canteiro de trapoeraba e sálvia azul, avistou um banco de madeira que servia de suporte para uma renca de recipientes de água vazios.
No céu da manhã nuvens imensas se agrupavam como poderosos exércitos celestes sobre a cidade que acordava para a semana de trabalho. Chegou mais perto, os garrafões de plástico pet não estavam vazios. Todos tinham as tampas atarraxadas e exibiam em seu interior uma coleção de mariposas, bruxas, vagalumes e besouros. Estava com a mão no bocal de uma das armadilhas quando ouviu barulho atrás de si. Voltou-se rapidamente, deu com o Aristeu de risadinha, cara de quem está te observando há hora. Como não podia deixar de ser, o mané já chegou deitando falação e botando banca.
— É um hobby, um passatempo, e também uma paixão.
― Paixão?! Isso daí serve pra quê? ― Peri nem pra disfarçar o desprezo, falou olhando no olho do mala.
― Paixão, rapaz, não serve pra nada, mas ao mesmo tempo é o que anima tudo. Sem ela um homem nem existe.
— Não é disso que eu tô falando. Pra que zoar os bichinhos desse jeito?
— Bom, essa é a minha pequena brincadeira, com ela me mantenho ligeiro, atento, qualquer um que tenta entrar na minha casa, eu pego no ar. Afina os reflexos. É útil, principalmente pra me livrar de hóspede que não foi convidado.
― Pensei que a casa fosse da mãe da Ceci...
― Escuta aqui, moleque, eu cago montanha pro que você pensa. Se liga que vou te dar a letra: tô te filmando, moleque, melhor pra tu é não demorar no meu terreiro.
— Fica na manha, tio, não vou ficar morando aqui de favor, parece que já tem bastante encostado no pedaço pra caber mais um.
— Tá vendo aquela mariposa ali? Já nem se mexe, tá quase acabando o ar dela, é que nem você: acabou seu tempo aqui, pivete, vaza logo ou vai ficar ruim pro teu lado. Quero você fora hoje mesmo, não importa o que tua amiguinha disser... ei, onde você vai?, tá deixando o bagulho aberto!
― Fecha você. Essa brincadeirinha é pra quem gosta, e, mano, parece que tu gosta bastante.
Ceci e a mãe terminavam de tomar café e se preparavam para sair quando chegou à cozinha. Segunda feira, lembrou de repente, dia de sair cedo pro trampo ou pra escola, quem não tem a vida ganha precisa encarar a labuta. Sem miguelagem nem caô. A real daquela família, até onde Peri entendeu, era a seguinte: dona Vânia ficou viúva com a filha ainda bebê de colo, foi à luta, montou um salão de beleza, e criou a menina na cara e na coragem do jeito que deu. Quando a garota completou dezessete anos, avaliou que já poderia trazer o namorado pra morar com elas.
Aí é que acabava o sossego de Ceci e entrava o joão-sem-braço do Aristeu na história. Boa pinta, arroz de festa e farofa pra qualquer churrasco, o típico playboy de subúrbio chegando na meia idade: conseguia a proeza de ser mosca da academia e da padoca da esquina, além de diretor da escola de samba do bairro. Se fazia de coitado, sempre tinha um chefe que pegava no pé dele nos raros empregos, mas o que ele fazia mesmo era correr atrás de mulher e dinheiro, de preferência, que viessem juntos pra não ter que pegar no pesado.
A amiga tinha prova na escola naquele dia, combinaram de se encontrar depois para resolverem juntos os próximos passos. Ele ficou pela área, zanzando de skate pra matar o tempo. Incrível como parecia conhecer essa menina desde sempre, sentia nela uma confiança nunca experimentada com pessoas que conhecia desde pivete, pensar em Ceci, estar perto dela, vibrava nele uma corda inteiramente nova da alma, viver tinha se tornado para ele mais perigoso e real do que jamais fora. Seria capaz de a reconhecer pelo modo de andar, o perfil, as poses, distinguir seu cheiro inconfundível ou sua voz no meio da multidão.
Cansou de andar sem rumo e decidiu voltar, o dia estava abafado e quente demais. Lembrou da festa de dezesseis anos de um burguesinho que certa vez contratara o seu grupo de street: moleque montado na grana, filhinho de papai, festa open bar, bairro de bacana, segurança na porta e o caramba a quatro, mas um puta cara infeliz. Na época, achou aquilo esquisito, coisa de granfino, mas agora entendia: fugir do perigo, hora a hora, minuto a minuto, lhe trouxera a medida do quanto a vida é cara — e isso é bem mais difícil de descobrir quando a maré está mansa. Entrou pela lateral do terreno, indo direto para a edícula onde estavam as suas coisas. No meio do caminho presenciou uma cena pra lá de esquisita espiando pelo vitrô da sala.



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