quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

conto de um Natal sem luz


            Há muitos anos o ritual se repete entre eu e o meu irmão, dois solteirões à deriva na noite de Véspera: jantamos, conversamos, chegada a meia noite, trocamos presentes e voltamos cada um para a sua casa. Sem filhos, amigos ou família próxima, numa cidade grande demais, apressada demais para prestar atenção em dois velhos amargos e solitários, passamos o serão a brincar com as nossas vicissitudes, e sempre terminamos por repetir a piada interna de que somos dois pedaços de DNA suicida. É cômico sem chegar a ser trágico, um costume de natalino algo incorrigível, mas inocente.
            Ontem, porém, não foi uma noite igual às outras, alguma coisa aconteceu.
            Um acontecimento que não parece ter realmente ocorrido. Para mim, um pesadelo sem os traços do real, porque os acontecimentos reais deixam restos, marcas, dão uma certa concretude à experiência. Deste acontecimento, o único traço reconhecível é uma faixa — dessas que a polícia usa para isolar uma área por algum motivo — em volta de algumas árvores em cima do canteiro central da avenida na qual eu vivo.
            Foi provavelmente o dia mais chuvoso do ano. Ouvi um homem berrar, demorei para prestar atenção (há uma escola em frente e sempre acontecem muitos eventos e festas por lá nesta época o ano). Não era um grito qualquer. O homem gritava em intervalos regulares, um grito de horror. Debruçado na varanda, vi um rapaz falando com o porteiro, pedi informações dali mesmo e me disseram que alguém estava preso ao fio de alta tensão. Os bombeiros já tinham sido chamados.
            Desci. Será que não havia nada a ser feito, apenas esperar?
            Embora fosse quase em frente ao meu prédio, estava escuro e eu só podia ouvir os urros subumanos, os pedidos de socorro. Estava quase na hora de ir encontrar meu irmão no restaurante que sempre reservamos para a ceia de Natal. Saí com medo, medo de ver, medo de ligar o grito à pessoa — se pessoa ainda houvesse. Naquele momento explodiu o transformador do poste de iluminação, o clarão súbito revelou a silhueta escura presa aos cabos. Nitidamente, senti o cheiro da carne queimada.
            Um cheiro inconfundível de antigamente, do tempo distante quando meu avô matava algum leitão na engorda. O cheiro da pele do animal queimado vivo, o desespero demasiado humano do porco pendurado pelas patas traseiras, o ventre aberto de onde se arrancavam as tripas, esvaziadas para fazer lingüiça, os gritos lancinantes enquanto era dessangrado. Muitos anos depois, vim a saber que entre a facada fatal no coração do bicho e a sua morte decorriam escassos minutos, mas na minha memória infantil eram horas de agonia.
            Não conseguia me mover do lugar, no bolso do paletó, o celular soou furiosamente incontáveis vezes antes que pudesse avisar que estava tudo bem... comigo. Havia umas duas ou três pessoas ali, é verdade que estava escuro e ainda chovia. Só umas duas ou três pessoas. Aquilo não acabava nunca, não achei que se pudesse agüentar tanto tempo, sempre imaginei que o choque por descarga elétrica era algo fulminante. Quando voltei, horas depois, a polícia e o corpo de bombeiros ainda não tinham conseguido remover o corpo. O homem já não existia, mas agora o acontecimento estava ali, ruidoso, iluminado, presente.
            Meu irmão escutou atentamente o relato que, naturalmente, dominou a conversa daquela ceia de Consoada; deixou que eu esgotasse a excitação dos nervos em pandarecos falando sem parar. Contrariamente aos nossos hábitos, pedimos uma segunda garrafa de vinho, perto do momento da despedida ele aproveitou para observar: "É uma pena. Deveríamos estar comemorando a vida, afinal, toda esta história de Natal diz respeito ao nascimento de um menino. Mas nem tudo deu errado, acertei meu presente para você: a gravação completa dos quartetos de cordas de Beethoven, são as últimas composições, o lamento maravilhoso, pungente (e eterno), de um moribundo".
            Pela manhã bem cedo a rua estava vazia e havia uma viatura da polícia que logo depois foi embora. Perguntei sobre o acidente de ontem. Parece que um homem tentou roubar os fios e foi eletrocutado. Mas chovia tanto. Como alguém tentaria roubar os fios em meio a um temporal daqueles? Hoje não tinha gente na rua. Nenhuma notícia no jornal, na internet, no Facebook, apenas um Twitter do corpo de bombeiros. Nem mesmo no grupo de moradores do bairro que costumam publicar acontecimentos que interferem ou preocupam em relação à segurança ou cotidiano dos moradores havia alguma menção ao ocorrido.
            No aparelho de som o quatuor número 15 chegava aos delirantes acordes finais, um dolente allegro appassionato.
            Alguém morreu.
            Um homem gritou desesperadamente muito tempo antes de morrer. Tudo que sobrou são umas poucas árvores decoradas por luzinhas de LED, isoladas por uma fita amarela e preta.


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