quarta-feira, 23 de maio de 2012

Manuela, Barbara, Barbarella (parte 1)




            A chuva dura pouco, novamente o calor estival volta a fustigar os habitantes do menor país do mundo. A menina sai para caminhar tão logo termina o aguaceiro. Ela está chorando. Não é incomum acontecer; mas hoje isso não a preocupa por dois motivos: os óculos, que detesta usar, escondem as lágrimas curtas e, também, porque chora de felicidade. Descobriu que pode ser, que vai ser, aliás, já é feliz; a felicidade pode ser assim como uma tarde de sol que começou nublada. Caminha a passos largos, de quando em quando, entremeados por pulinhos de contentamento impaciente. Acabou de completar quinze anos e sente uma felicidade vital e desanuviada que só nessa idade se pode sentir. Tem uma vida maravilhosa pela frente.
            São as férias escolares de final de ano letivo, Manuela terminou o segundo ano do colegial no Liceo Scientifico com notas excelentes. É o orgulho dos pais e dos quatro irmãos. A família Morandi é de poucas posses, não há viagem de férias, nem acampamentos de jovens, como para muitos dos colegas de escola das crianças ― zelosos, Babo Emanuele e Mamma Marina são bastante estritos quanto a privilégios: se não houver regalias para todos, não as há para nenhum. Ninguém reclama.
A quarta filha dos Morandi, no entanto, demonstra uma extraordinária aptidão para a música; Manuela tem aulas de flauta transversal três vezes por semana e canta no coro da igreja de Santa Ana, dentro do Vaticano, onde vive desde que nasceu. Mesmo durante as férias grandes, continua a freqüentar as aulas da renomada Scuola Tommaso Ludovico da Victoria, conservatório ligado ao não menos importante Instituto Pontifício de Música Sacra. Contrariando seus hábitos, naquele dia toma a saída da Sala de Audiências, virando na Piazza dei Sant’Uffizio e seguindo a pé pela Via di Porta Cavallegeri até à barulhenta Gregório VII.
Balançando o estojo do seu instrumento no compasso de um rondó mental, ela se baladeia pelas ruas a perguntar: “Sou bela?, sou feia?, ou, pior que tudo: serei apenas... comum?!” Não, não pode mais duvidar, o mundo descobriu que ela possui algo de muito especial sob aluviões de timidez, inibição e medo. Às vezes tem a impressão de que as coisas se passam dentro de um filme; sofre como as heroínas dos romances, sim, sofre terrivelmente por causa de um assunto secreto que não tem coragem de contar a ninguém. Nem mesmo a um diário.
Só que agora, enquanto sai à direita na Via Aurelia, percebe que a alegria é um pássaro que perdeu o medo de se aninhar entre as suas mãos. O verão é uma estação louca, pensa, os jovens precisam sair das suas casas e andar, andar perdidamente, só para aspirar o odor pungente que sobe das ruas molhadas de chuva. “Manuela, quão leve é o ar que agora flui para teus pulmões”. A avenida contorna caprichosamente um imenso quarteirão à esquerda, onde uma mansão decrépita mal se entrevê atrás de um espesso bosque; é um lugar ermo que costuma evitar descendo do ônibus mais adiante, próximo à Via Paolo III. Um caçador de talentos, representante de uma companhia de cosméticos, um homem muito bem vestido, perfumado como uma senhora, disse que ela era quem ele estava procurando.
            ― Eu sei mana, mas escuta, pensar mal é pecado, mas às vezes se adivinha. Não digo que não seja possível... é que, bem, você nunca tinha se atrasado, a senhora Costanza telefonou.
― Você é a irmã mais velha, e eu respeito, mas é que você não viu: um cavalheiro tão distinto, me mostrou o cartão dele, os portfólios da campanha... depois, é uma grande companhia, eles querem um rosto de uma moça moderna, simples, não querem mais o jeito de boneca das modelos profissionais...
― Manuela, o papai sempre diz...
― Ah, você sabe que papai e mamãe têm medo de fantasmas, sempre são contra as nossas amizades, nunca nos deixam sair. O emprego do papai, as responsabilidades do cargo do papai. É só o que sabem dizer.
― De qualquer maneira, você não devia tomar nenhuma decisão antes de falar com eles. Prometa pra mim.
― Sabe o que ele me disse? Que eu poderia usar um nome artístico: Barbara Gregori. Não é demais?

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