domingo, 27 de maio de 2012

Manuela, Barbara, Barbarella (parte 2)



O monsignore está muito preocupado. Apesar de ser o terceiro homem mais poderoso da Igreja Católica Romana, abaixo apenas do Papa e do Secretário de Estado do Vaticano, ele tem motivos de sobra para acreditar que suas três décadas de crescente poder na hierarquia eclesiástica se encaminham para um ocaso vergonhoso. Isto se conseguir escapar da prisão. Da janela da sua sala, situada no quarto e último andar do bloco central do Palácio do Governo, observa os jardins defronte onde o brasão de armas da Santa Sé está desenhado nos canteiros de grama milimetricamente aparada. Anela possuir aquelas chaves cruzadas de ouro e prata que representam as chaves do reino dos céus prometidas a São Pedro.
O arcebispo Casimir Markevicius precisa mover as peças com extrema prudência no tabuleiro da intrincada trama de política religiosa, finanças e poder mundano que ele mesmo ajudou tecer. Aos sessenta e um anos, ainda exala saúde e ostenta a compleição atlética que lhe valeu o apelido de “Gorila”; é um homem rico e influente, mas descobriu dolorosamente que não é inatingível. Anda freneticamente em todas as direções no seu gabinete, estrala os dedos das mãos, franze os ombros, sem conseguir achar saída ou sossego. Febril, acredita ter atingido a perturbadora lucidez dos patibulários: já ouvira falar dessa clareza mental que acomete os que sabem que vão morrer.
Percebe que a essência do seu ministério está fadada à incompreensão, seus modos, suas ações e seus métodos não se coadunam com a santimônia afetada dos seus pares. Se o futuro certamente o condenará, trata agora de evitar que o presente também o faça.
― Pode-se viver neste mundo sem se preocupar com o dinheiro? ― vocifera para as paredes ― Não se pode dirigir a Igreja com ave-marias!
A madrugada do dia 23 de junho de 1983 avança, mas, aquele que chegou a ser chamado de “banqueiro de Deus” e “guarda-costas do Papa” não se deixa vencer pelo sono. Relembra a infância pobre em Cicero, periferia sem lei da Chicago de Al Capone, relembra o decisivo apoio do cardeal de Nova York e capelão militar dos Estados Unidos, Francis Spellman, nos seus primeiros passos em Roma. Outros tempos, mas a mesma santa cruzada: o bom combate. Spellman cuidara pessoalmente dos financiamentos para evitar a infiltração comunista nos países da América do Sul e da OTAN, como quando enviou milhões de dólares para a Democracia Cristã de Alcide de Gasperi vencer as eleições italianas no pós-guerra imediato.
E qual reconhecimento obteve este clérigo admirável? Ficar marcado pela apropriação do dinheiro que os nazistas refugiados na América haviam roubado aos judeus. Em nada importava o bom uso destes recursos? Não era verdade, como se lê na primeira epístola de Pedro, que “a caridade cobre uma multidão de pecados”? Markevicius era o vértice oculto de uma encruzilhada histórica: ajudara Montini, o protegido de Pio XII, a se sagrar Papa depois do excessivamente liberal João XXIII, evitara, após a morte de Paulo VI, que o intransigente Luciani iniciasse um expurgo no Banco do Vaticano; Benelli, secretário de Montini e cúmplice no affair Luciani, não logrou o pontificado, mas a solução de compromisso Wojtila mostrou-se acertada no tocante à luta anticomunista.
Porém, a recente falência do Banco Ambrosiano de Milão tinha o potencial explosivo de todas as ogivas nucleares da Guerra Fria. Trapaceiros de variado calibre, políticos corruptos, capi da Cosa Nostra, empresários inescrupulosos, nobres, maçons, prelados complacentes e Cavaleiros do Santo Sepulcro viam-se assim sugados pelo buraco negro das finanças nada santas da Igreja.
Há mais de dez anos no comando do I.O.R. (Istituto per le Opere di Religione, o banco da Santa Sé), na prática, Casimir Markevicius gerenciava um banco off shore em pleno centro de Roma, cujas operações financeiras ficam fora dos acordos jurídicos e dos filtros antilavagem interbancários e internacionais. Um paraíso fiscal que negociava com altos depósitos e retiradas em espécie, títulos do governo italiano, ações norte-americanas falsificadas, contas numeradas ou em nome de “laranjas”, fundações religiosas de fachada e... dinheiro da Máfia. O rombo de quase dois bilhões de dólares do Ambrosiano expunha as entranhas de uma engrenagem que servira, entre tantos propósitos abstrusos, para financiar o sindicato Solidariedade na Polônia e iniciar a derrocada da Cortina de Ferro.
É necessário fechar rapidamente o contencioso com o Ambrosiano de modo a minimizar os danos de imagem e Casaroli, Secretário de Estado do Vaticano, estipula, junto a uma comissão mista com o Estado italiano, uma indenização de 100 milhões de dólares aos clientes do banco. Mas o poderoso cardeal se recusa a ressarcir a Máfia. O arcebispo sabe que as famiglias têm esse costume de mandar recados através de suas ações violentas. Dois envolvidos no escândalo morrem em “suicídios” mal esclarecidos, então, vem o atentado contra o Papa. O círculo de fogo se fecha; pela primeira vez, Markevicius não consegue evitar um atentado contra a vida de Sua Santidade.
E agora, o desaparecimento da menina.

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